Quando a lei de murph bate pesado.
Nesse capítulo eu quis tentar dar uma diferenciada desse meu título de zumbis de outras obras que eu li ou vi, por isso mudei a perspectiva, focando a narrativa em outro tipo de personagem, ainda que fosse ligado ao protagonista do primeiro arco.
Espero que tenha me saído bem.
Boa leitura!
5. Interlúdio da Desgraça.
Kamila de Oliveira odiava seu emprego.
Entrara no setor de tesouraria da empresa por indicação de um tio, que conhecia o chefe, por isso, no começo, os demais funcionários eram agressivos com ela.
Levou mais de seis meses, mas Kamila acabou conquistando a simpatia dos colegas, ao mesmo tempo em que crescia em seu peito um ódio sem tamanho, justamente pelo amigo de seu tio.
Horácio Santos.
O típico chefe abusador, vivia exigindo muito mais do que ela conseguia dar conta, mas se o dono da empresa fazia algum elogio, apenas ele o recebia, horas extras eram obrigatórias, mas raramente pagas e nem mesmo um banco de horas era montado de forma justa.
Kamila, no entanto, precisava demais daquele emprego, uma vez que finalmente saíra de casa e precisava se manter sozinha, principalmente após uma discussão feia que havia tido com seu pai, onde muitas acusações sobre ela ser uma inútil foram feitas, de forma que não haveria tão cedo uma reconciliação.
A situação só melhorou levemente quando o novo estagiário foi contratado.
Fred Dantas era mais jovem que ela, ao menos uns dois anos, mas parecia estar tão apaixonado que isso não fazia diferença para ele.
No começo, entretanto, fazia e muita para Kamila.
Conforme o tempo foi passando, precisando ir além de seus limites para resistir à tentação de socar a cara de Horácio, a moça finalmente começara a ceder às tentativas do estagiário, marcando um encontro para depois do happy hour daquela sexta.
O que veio depois mostrou o quanto aquela ideia havia sido ruim afinal, que, de fato, os dois não teriam chance alguma.
O dia começara da forma de sempre, com Horácio sendo o mais escroto possível, mas conforme as horas passavam, as atitudes do chefe foram ficando cada vez piores, chegando a mandar Fred entregar uns documentos, alguns andares acima no prédio, com uma urgência totalmente desnecessária.
Claro que ela não iria escapar e, faltando poucos minutos para o fim do expediente, Horácio a mandou para o "quartinho das cópias", onde ficava a máquina de xerox da empresa, que quase ninguém mais saberia dizer para que ainda era mantida lá.
Ninguém exceto as funcionárias que eram assediadas pelo chefe.
Talvez por algum respeito que ainda nutria pelo tio de Kamila, até aquela sexta, Horácio nunca havia tentado nada, mas como havia descoberto os planos da jovem com, como ele pensava, um "reles estagiário" a raiva por ser sempre rejeitado falou mais alto.
Nem mesmo o estranho desconforto que estava sentindo o dia inteiro fez com que Horácio desistisse de seu plano e, assim que quase todos os funcionários haviam saído, sem se importar com alguns gritos que chegavam até o escritório, nem com um calor que parecia prestes a cozinhá-lo por dentro, o abusador logo se colocou a seguir até a sala de xerox.
Kamila já ouvira os rumores, mas ainda acreditava que o chefe não desceria tão baixo, ao menos até ouvir a porta atrás dela abrir com um estampido.
Não querendo dar o gosto do outro perceber seu susto, ela se manteve de olhos na máquina à sua frente.
— Se acha que isso vai dar em algum lugar, é melhor pensar duas vezes seu velho filhadapu...
A frase foi interrompida quando Kamila sentiu dentes se enterrando com força no seu ombro direito, iniciando uma verdadeira batalha para se desvencilhar das mãos que tentavam segurar seus braços, resultando da perda de um grande naco de carne e com ela conseguindo derrubar o agressor em meio a várias caixas vazias de papel para cópia.
Só então, para horror eterno da jovem, ela vira o estado em que Horácio estava.
Pele acinzentada, dentes à mostra, os lábios pareciam derretidos, o calor do corpo era tão evidente que deixava marcas de queimado nas caixas de papelão ao seu redor, que iam sendo amassadas conforme ele tentava ficar de pé.
— Desgraçado!
Com uma mão pressionando o ferimento, a adrenalina do momento não a deixou perceber o aumento da própria temperatura e assim Kamila descarregou todos os impropérios que conhecia, depois, sem perceber a força que estava demonstrando, pegou uma pesada caixa cheia com os pacotes de papel de cópia e jogou sobre a cabeça de Horácio, praticamente explodindo-a, o que fez o imenso corpo do abusador começar a tremer, até finalmente ficar imóvel.
Com passos incertos ela cambaleou o mais rápido que pôde, até chegar à porta do escritório, abrindo-a sem se importar com os estranhos gemidos que ecoavam ali atrás.
Ela saiu e de imediato um de seus braços foi agarrado e separado do corpo pela articulação do cotovelo, o que resultou num urro animalesco, fazendo com que ela corresse em desabalado desespero, empurrando para longe as várias criaturas que a cercavam, até chegar a um lance de escadas próximo e lá caísse.
Tudo então ficou escuro.
Depois ela abriu os olhos e viu que o mundo inteiro estava vermelho.
"O... O que aconteceu?" em desespero cada vez maior, Kamila percebeu que havia perdido a capacidade de controlar seu corpo, apesar de sentir tudo o que acontecia, era como se sua mente não estivesse mais no controle. "Eu... E-eu perdi um braço... Me-meu Deus... Onde está a ajuda? Cadê os médicos? Po-porque o filha da puta do Horácio fez aquilo? E... Que fome é essa? Eu... Eu preciso comer..."
Um homem de terno estava de costas para ela, parecia chorar copiosamente, palavras como "querida", "amor" e frases como "me desculpa" chegavam distorcidas aos ouvidos de Kamila, que sentia seu corpo se aproximando dele, a fome parecia prestes a enlouquecê-la.
Sem pensar duas vezes, nem se importando com o homem que chorava por ter acabado de matar a própria esposa, que havia se transformado também, a jovem apenas o derrubou de costas no chão e começou a devorá-lo.
Teria permanecido naquele banquete por muito tempo, não fosse a infeliz interrupção que aconteceu.
― Ka… Kamila?
Novamente o mundo havia parecido escurecer, mas ouvir seu nome, dito por alguém cuja voz ela conhecia, fez a consciência da garota aflorar outras vez e, infelizmente, ela falhara novamente em controlar seu corpo, sendo impossível até mesmo articular qualquer palavra, que não soasse apenas como um grunhido inumano.
"Fred? Ó meu Deus! Ele não... E-eu... Eu devorei um homem... E eu... Eu... Quero mais... Fred! Ele vai me ajudar... Fred! Socorro! E-eu... Porque não consigo falar... Fred! O-o que ele tem na mão? É uma lança? Co-como ele conseguiu aquilo e... Não... Não... NÃO!"
Kamila sentiu o cabo de vassoura afiado se enterrando dentro de sua boca, atravessando sua garganta e saindo numa explosão de carne, sangue e restos de osso, por sua nuca.
Os últimos pensamentos conscientes da moça foram questionamentos a Deus sobre os motivos dela ter que partir daquela forma, no corpo de um monstro que ela não podia controlar e, acima de tudo, o arrependimento de não ter tido uma chance de se reconciliar com seu pai.
Ela ainda viu o jovem com quem deveria estar àquela hora, numa cama de motel provavelmente, pisando em seu peito, sentindo a lança ser arrancada de seu corpo, vendo-o se afastar cabisbaixo, conforme finalmente tudo ia escurecendo outra vez.
4 Comentários
Esse episódio foi tenso, ver o outro lado da situação, o outro lado de quem virou zumbi, ver as vidas sendo destruídas, tendo lampejos de quem foi, do que está acontecendo, de quem conhecia e da situação terrível ao seu redor mas sem poder sequer se controlar, cara, isso deve ser muito assustador e devastador... Eu bato palmas para tua capacidade de nos colocar no lugar dos personagens e nos fazer ver as coisas por ângulos que jamais pensaríamos, meus parabéns!!
ResponderExcluirMuito, mas muito obrigado mesmo pela leitura e comentário meu amigo!
ExcluirConfesso que, ao terminar esse capítulo eu fiquei muito feliz e satisfeito...
consegui passar tudo o que queria, de como funcionaria esses zumbis e, como você bem explanou o desespero dos personagens.
Cara, valeu demais pela força e incentivo de sempre!
Concordo com o Lanthys.
ResponderExcluirA narrativa vista pelo ótica de Kamila, que virou uma zumbi e foi morta pelo seu namorado/amante deu um peso muito maior ao quadro de terror instalado.
O tênue liame entre a consciência e a loucura foi algo muito bem bolado e narrado.
A gente conseguiu sentir todos os sentimentos pelos quais Kamila passou, desde a raiva do escrtoto do seu chefe até os estrertores de uma morte horrível e inevitável...
Foi o capítulo que mais fez jus ao título...
De fato, pra Kamila, o mundo acabou numa sexta-feira...
Mais um epísódio maravilhoso para a coleção!
Mandou bem demais!
Muito obrigado pela leitura e comentário.
ExcluirEu realmente quis dar uma mudada no foco do texto para nõ ficar apenas nos sobreviventes, achei que seria interessante não apenas acompanhar a transformação da Kamila, como mostrar que sua mente ainda não se perdeu.
Valeu mesmo