11. Seguindo em frente.

 


Para sobreviver é necessário abandonar algo.


Boa Sexta!

E continuamos com a história de Caíque. Será que, apensar de suas limitações, ele conseguirá sobreviver?

Venha descobrir

Portanto... Sem mais delongas...

Boa leitura!



11. Seguindo em frente.


Caíque nunca segurou o fôlego por tanto tempo em sua vida, mas desde que começara o Dia Z, ele já havia aprendido o valor de ficar em silêncio, para não chamar a atenção da criatura que estava tão próxima.


Em seu íntimo ele queria gritar, espernear, chorar alto, mas, naquele momento, além dos óbvios empecilhos físicos, era de suma importância permanecer quieto e imóvel.


Dentro do furgão tombado, um zumbi se refestelava com a cara quase toda enfiada na barriga de Felipe, um dos membros de sua equipe, responsável pela manutenção das cadeiras que Caíque usava em suas competições.


O cadeirante só reconheceu o companheiro por causa do boné azul que ele sempre usava e que, surpreendentemente, ainda não havia caído de sua cabeça, mesmo com o maldito monstro que continuava sua refeição, balançando o corpo de Felipe com violência a cada dentada.


Mas o pior ainda estava por vir, quando um grito vindo do lado de fora do furgão chamou a atenção do zumbi que, ao erguer o rosto, fez com que Caíque precisasse morder a mão para não gritar ao reconhecer quem era.


Carina parecia prestes a se engasgar com o tanto de carne que pendia de sua boca, conforme erguia sua cabeça na direção do som, que indicava uma provável nova e fresca fonte de carne para sua forma insaciável.


Caíque percebeu a imensa dificuldade que a criatura, que ele acreditou chegar a amar num passado recente, apresentou para apenas sair do veículo tombado, deixando-o a sós com seus pensamentos e o fedor vindo do que restara dos mortos, amontoados ao seu redor.


Outra vez o destino o colocava diante de duas opções.


Podia se entregar e esperar a morte chegar, o que provavelmente aconteceria em breve, caso algum dos mortos ao seu redor se erguesse.


Ou podia fazer o impensável, tentar alcançar sua cadeira, ver se ela ainda tinha condições de uso e, com ou sem ela, se arrastar para fora do furgão e descobrir se era possível sobreviver ao que estava acontecendo.


XXX


Carina nunca se interessara por esportes.


Desde pequena, seu maior interesse era pelos livros e todos os mundos pelos quais poderia passear, apenas ao folear as páginas e assim seguiu por boa parte da vida.


Tudo mudou quando ela conheceu na faculdade um jovem para-atleta que se esforçava mais que qualquer outro, não só para manter as notas altas, mas para se destacar, fosse qual fosse o esporte pelo qual se interessava.


Certo dia Caíque, cujo nome ela descobriu por algumas amigas, estava procurando pessoas para ingressar no seu grupo de apoio, formado para ajudá-lo nas competições em que ia participar.


Sem pensar duas vezes ela se apresentou como uma “faz tudo” e realmente se mostrou como uma das mais esforçadas assistentes de Caíque, assumindo várias funções, a de motorista era apenas uma delas.


Pouco a pouco ela tentou uma aproximação, mas sempre esbarrava na muralha da vergonha, ou, principalmente, no fato de que o jovem parecia só ter olhos e atenção para os esportes.


Boa observadora, Carina havia reparado nos sinais de medo que Caíque demonstrava, toda vez que precisava entrar em algum veículo e sempre prometia para si mesma que faria algo a respeito.


Algum dia.


No fim, esse foi um dos seus maiores arrependimentos, quando sentiu a mordida em seu braço, enquanto recobrava a consciência, presa dentro do furgão tombado.


Ela puxou o braço com força e então o zumbi, que ainda estava fora do veículo, logo perdeu o interesse nela, indo perseguir outras pessoas, mas o estrago já estava feito.


Primeiro veio o calor, era como se estivesse cozinhando por dentro, depois os movimentos involuntários e então a fome avassaladora, que tentou saciar abocanhando o corpo de Felipe que, sem saber da terrível transformação pela qual a amiga estava passando, chamou seu nome, pedindo por ajuda.


Tendo quebrado as duas pernas, o rapaz não ofereceu resistência quando o monstro, que um dia foi Carina, começou a devorá-lo, mas a jovem tentava desesperadamente se controlar, sem obter sucesso e, por isso, tentava forçar sua atenção para longe do fundo do furgão.


Com certeza era lá que Caíque estava.


Vivo ou morto, não importava, contanto que ela não o atacasse.


Por influência dela ou não, o corpo de Carina, ao ouvir os gritos das pessoas que estavam do lado de fora, acabou saindo do furgão e, após atacar algumas delas, se juntou a uma horda que se movia lentamente na direção norte da cidade.


XXX


Merda…


Caíque sentia toda esperança morrer pouco a pouco, conforme percebia que, mesmo com sua cadeira ainda podendo ser usada, seria quase impossível sair do furgão tombado com ela.


O jovem sentia um calor aumentar ao seu redor, parecendo vir dos corpos dos colegas e ele poderia jurar ter visto pequenos movimentos que vinham deles com certeza, o que aumentava sua apreensão e ansiedade em achar uma saída para aquela situação.


Sentiu uma velha pontada, a conhecida sensação incômoda, que lhe atacara tantas vezes no passado, o sentimento de desistência diante das adversidades, de que ele não conseguiria seguir em frente, de que enfrentava uma luta injusta, impossível de vencer.


Sentiu-se assim ao descobrir que suas pernas estavam mortas para sempre, na primeira vez que tentou mover as rodas da cadeira, quando segurou uma bola de basquete, pouco depois de descobrir os esportes paraolímpicos.


A respiração foi ficando mais difícil e a visão começava a ficar turva, enquanto ele percebia um aumento, tanto no calor que os corpos ao seu redor emanavam, quanto nos movimentos erráticos que eles exibiam.


Caíque já se preparava para se despedir da vida, preparado para se tornar ou almoço, ou, na pior das hipóteses, um zumbi que acabaria preso dentro do furgão, sem poder usar as pernas para sair de lá.


Assim que a ideia de arranjar algo que pudesse usar para cortar os pulsos, sem poder aceitar a ideia de se tornar um daqueles monstros, Caíque congelou, ao ouvir algo batendo na lateral do veículo caído.


Ei! Você tá vivo?


Caíque poderia jurar que era um anjo, não fosse a roupa vermelha e amarela que o recém-chegado trajava e que, não apenas havia colocado a cabeça dentro do furgão, mas já estava entrando, que o jovem identificou como o uniforme de um conhecido posto de gasolina.


Ainda assim o ele imaginava que nem a voz de um anjo teria soado tão bem aos seus desesperados ouvidos.


Sem conseguir segurar as lágrimas, Caíque se permitiu ser erguido, enquanto o “Rapaz do Posto”, como ele estava chamando seu salvador, percebia a necessidade especial daquele que estava ajudando.


Não se preocupe… Meu nome é Henrique... Tem um grupo comigo e vamos te ajudar… Assim que eu te colocar lá fora, mando sua cadeira, beleza?


Cuidado aí dentro… Acho que meus amigos… Eles estão virando…


Tranquilo garoto! Agora vai com cuidado...


De fato, logo um sujeito imenso estava carregando o jovem, conforme outras quatro pessoas se mantinham de costas para o veículo, formando um tipo de perímetro de defesa, todos atentos para a aproximação de algum dos zumbis.


E lá vai ela! Cuidado aí fora!


Logo Caíque estava de volta em sua cadeira, testando para ver se o capotamento do furgão não a havia danificado, ficando feliz pela grana investida, uma vez que ela parecia em perfeito estado, apesar de tudo.


Cara! — esbaforido pelo esforço Henrique começava a se erguer pela porta lateral do furgão tombado, para voltar à rua. — Tu teve muita sorte! Tá uma zona aqui dentro e…


A frase foi interrompida quando o rapaz sentiu algo pegando seu pé.


Em seguida um grito de dor e horror se fez ouvir, conforme Henrique pedia por uma ajuda que não chegaria, uma vez que os demais sobreviventes, antes mesmo de se recuperarem do choque e sequer cogitar uma tentativa de auxílio ao “Rapaz do Posto”, alguns zumbis próximos começaram a caminhar lentamente na direção do furgão.


Se ficassem, morreriam com certeza, se corressem, talvez, teriam uma chance.


Naquele momento o talvez pesou muito mais do que a certeza. 

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4 Comentários

  1. Eis outro ponto de vista muito forte, veja, o cara foi salvo pelo Henrique, que tirou ele literalmente da morte, mas, quando a morte chegou ao Henrique, tiveram que deixá-lo para trás... Eu creio que isso deve fazer um estrago devastador em quem tem empatia, uma vez que a gratidão pela tua vida, não pode ser expressada, pelo contrário, a pessoa morre te olhando e muito provavelmente questionando "cara, eu me arrisquei por ti e agora tu vai me deixar morrer aqui?" Me colocando no lugar do Caíque que parece ser bastante empático, eu tentei fazer essa ponderação e imaginar como eu me sentiria, porque no mínimo o que eu diria para eu mesmo nessa questão, ao ver isso acontecer é "Que filha da putagem mano!" Eu sei que ele tem obstáculos, que fisicamente ele não poderia salvar o Henrique, mas me refiro ao emocional, porque quando tempos a empatia, mesmo que tenhamos todas as provas de que não poderíamos fazer nada, a gente segue se culpando e achando que deveria pelo menos ter tentado! Grande episódio meu amigo, mais uma vez parabéns!

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    1. Valeu mesmo pela leitura e comentário meu amigo!
      Cara, taí algo que não me atentei e que poderia gerar ótimas cenas "em off" quando não houvesse ação em si...
      Por isso adoro seus comentários, sempre ajudam a melhorar e muito a minha narrativa.
      Agradeço de coração, prometo que, em breve todo esse tema da "síndrome de sobrevivente" será melhor explorada.

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  2. O comentário do Lanthys foi perfeito. Eu concordo com ele em suas ponderações

    Eu não queria estar na pele do Caique.

    Ser ajudado e mãopoder fazer nada por quem o ajudou. Uma triste ironia!

    Um capítulo maravilhoso!

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