Terra Zenith - Teatral. Apenas uma noite.

 


Quando a dor é maior que tudo.

Aqui estou para repostar um conto que me surpreendeu muito pelas reações de alguns leitores.

Eu só queria fazer um "Homem Aranha", para o universo de heróis que criei, mas recebi alguns feedbacks interessantes, mostrando que houve um subtexto que nem mesmo eu havia percebido.

Não entrarei em maiores detalhes para não estragar a experiência de futuros leitores, portanto, sem mais delongas... 

Boa leitura!




Terra Zenith.

Teatral

Apenas uma Noite.




Sobem as cortinas.


O cenário:


Um quarto escuro, onde a luz da rua entrava apenas por uma pequena fresta da janela fechada. Uma cama simples, um criado mudo onde jazia um abajur, desses comuns, achados até em lojas de R$1,99, ao lado de um livro de Machado de Assis, cujas páginas gastas estavam abertas de forma despudorada, deixando ao léu as palavras do escritor. Um guarda-roupa permanecia com uma das portas quebradas, pendendo insistentemente, sem cair apenas por um milagre. Esses eram os únicos móveis ali.


Nas paredes muitos pôsteres de peças teatrais, que estiveram em cartaz há muitos anos, dividindo espaço com as novidades da semana, criando um ar caótico no quarto, deixando claro que, quem quer que morasse ali, não estaria no juízo perfeito de suas faculdades mentais.


Existiam apenas duas portas. A que levava para fora do quarto e a do banheiro, o único outro cômodo, que finalmente se abriu, dando passagem ao personagem principal.


Este entrou no quarto arrastando os pés, corpo todo arqueado como um velho, mas sendo possível perceber se tratar de alguém bem jovem, por volta dos vinte anos. Seguiu até o criado mudo, abrindo uma gaveta e dela tirou um antigo CD-Player, onde pôs um cd do cantor Oswaldo Montenegro, colocou os fones de ouvido de forma quase religiosa e sentou na cama ao mesmo tempo em que a música “A Lista” começava a tocar.


Ele cerrou os olhos, voltando o rosto para o teto, curtindo a música. Lágrimas começavam a descer lentamente por sua face e ele voltou o corpo para frente, como se fosse vomitar. Depois de um acesso violento de tosse, ele levou a mão até o criado-mudo outra vez e, ainda com alguns espasmos da tosse, de lá retirou um revólver calibre 38. Ele abriu o tambor, notando que existia apenas uma bala, recolocou o tambor no local, deu um giro no mesmo e levou a arma à têmpora direita. Enquanto ouvia a música “Chão de Giz”, com as mãos firmes, sem sinais de tremedeira, apertou o gatilho.


Nada.


Ele então voltou a abrir os olhos e, percebeu que a bala estava pronta para ser disparada, caso ele tentasse outra vez. Decidiu devolvê-la para a gaveta onde era seu lugar e se ergueu, ainda ouvindo o CD-Player, indo na direção do banheiro. Uma vez lá dentro se olhou no espelho.


Personagem principal: Afinal, quem é você?


O rapaz voltou para o quarto e foi até o guarda-roupa, de lá retirando um uniforme colorido. Vestiu lentamente, como se fosse um ritual de renascimento, e foi novamente até o banheiro, levando nas mãos uma máscara que representava o típico símbolo do Teatro, com metade do rosto feliz e metade triste.


Personagem principal: Será Sérgio? (Ele colocou a máscara. Uma pausa dramática) Ou será o Teatral? (Ergueu o corpo arqueado, agora aparentando um vigor inesperado e seguiu discursando como se houvesse um grande público a ouvi-lo) A vida me escolheu hoje! Portanto devo retribuir levando a arte para os palcos que ela me proporciona! Que as luzes da Ribalta se acendam! (Dito isso ele foi até a janela do banheiro e, saltando por ela, ganhou a noite)


Descem as cortinas.


***


Sobem as cortinas.


O cenário:


Um típico beco da cidade, as paredes de ambos os lados se encontravam tomadas de pichações, algumas com desenhos, mas a maioria com frases que iam desde as simplesmente mal-educadas, às cheias de preconceito e ódio.


Mal dava para ver o chão, tamanha era a quantidade de lixo espalhado. Latas de cerveja e refrigerante, camisinhas usadas, caixas de papelão, sacos pretos, abertos pelos cachorros e moradores de rua. Excrementos completavam a degradante visão do beco, mostrando como os seres humanos podiam ser porcos. Porcos e covardes como logo se veria em seguida.


Um grupo de jovens, todos vestidos como neonazistas, exibindo com orgulho suas suásticas, entraram em cena, arrastando uma garota negra para o beco. Ela tentava se soltar, mas o número e força deles era superior e, entre lágrimas, ela gritava. Mesmo com o sangue que escorria de sua boca, resultado de um soco que a mesma havia levado, seus gritos por socorro chegavam às janelas que davam para o beco. Nos apartamentos acima, entretanto, as pessoas evitavam a todo custo se envolver.


Neonazista # 1: É isso aí! Vamos barbarizá a negrinha e depois detoná ela!


Neonazista # 2: Podicrê! É o bichooooo!


Um terceiro apenas continuava a arrastar a garota com violência, ele puxou o braço dela e a lançou sobre os sacos de lixo, espalhando a imundice e fazendo com que a garota tivesse espasmos de tosse e ânsia de vômito, mas antes de concretizar sua vontade, um dos atacantes a tirou dali.


Neonazista # 2: Porra cara! Quer fazer a festinha no meio do lixo? Tu é nojento... Hehehehe... (Ele começou a soltar seu cinto e abrir sua braguilha) Se prepara prá ser feliz, piranha.


Garota: Por favor...(Ela respirou profundamente, fazendo o típico barulho de um nariz cheio de coriza) Não façam isso... (Se encolhia, tentando proteger suas partes íntimas, mas era inútil e um dos Neonazistas arrancou sua blusa com violência, deixando seus seios à mostra) NÃÃÃÃÃOOOO!


Neonazista # 3: Olha como berra a cadela... (Ele também começava a tirar as calças) Vou colocar uma coisa na boca dela prá parar essa gritaria.


Os três se abaixaram e jogaram longe a saia da garota, após acertarem mais golpes nela e deixá-la quase sem sentidos. Em seguida começaram a fazer um tipo de sorteio para decidir quem seria o primeiro. Nesse momento uma voz foi ouvida sem que se visse outra pessoa em cena


Teatral: Soltem a mulher rufiões! Ou enfrentem a minha ira!


O herói pousou poucos metros atrás dos Neonazistas, eles se mostraram confusos com a chegada de uma figura tão espalhafatosa, fazendo várias poses e se preparando para lutar, ficando parado de uma forma que fez os criminosos rirem alto.


Neonazista # 2: Cacete! Quem é esse boiola?


Neonazista # 1: Sei lá cara! O que importa é que ele vai morrê!


Os três começaram a avançar, enquanto Teatral não fazia nada. A vítima recolhia suas roupas e olhou para aquele que tentava salvá-la, pensando em aproveitar e fugir, mas acabou paralizada, se surpreendendo com o que aconteceu a seguir.


Teatral saltou contra os três atacantes e, girando no ar, os atingiu em cheio nas cabeças com suas costas, derrubando-os para, em seguida, cair de pé e continuar a atacar, dessa vez usando os pés numa sequência de chutes que acabaram por derrubar de vez um dos inimigos e ferir seriamente outro.


Teatral: Última chance. Rendam-se e eu os poupo de mais dor e agonia. (Ele deu um pulo para trás, se preparando outra vez, pois os inimigos restantes corriam em sua direção, urrando de ódio) OK. O funeral é de vocês!


O primeiro Neonazista a alcançar o herói ainda sentia dor no braço e caiu pesadamente no chão, com dificuldade de respirar, depois de um golpe rápido contra sua traqueia. O último inimigo, que se mantinha em pé, parou ao ver o colega caído e tentou fugir, mas foi impedido quando Teatral saltou, com tamanha graça que parecia voar, atingindo-o com um chute na nuca que, por pouco, não quebrou seu pescoço.


Ele então se aproximou da garota, que agora conseguia se colocar de pé, sendo amparada por ele. Os dois ficaram frente a frente, olhos nos olhos e, sem medo, lentamente, ela levou as mãos para sua máscara, pretendendo ver o rosto do seu salvado, mas logo o herói a afastou delicadamente.


Garota: Muito obrigada. ObrigadaObrigadaObrigadaObrigada. Me diz o que eu posso fazer prá agradecer?


Teatral: Apenas evite problemas. Eu já tenho muito com o que me preocupar e posso não estar por perto numa outra vez. (o som de sirenes começou a ser ouvido) Pelo visto ainda existem bons samaritanos por essas bandas. Ligaram para a polícia e les podem cuidar de você agora. Adeus!


Dito isso ele se lançou para o alto, mal tocando nas paredes dos becos, dando a impressão de que realmente poderia voar e logo sumiu do campo de visão dela e da plateia, deixando a garota sozinha com seus agressores, até que alguns policiais se aproximavam para ajudá-la.


Descem as cortinas.


***


Sobem as cortinas.


O cenário:


Numa rua mal iluminada outra garota, claramente menor de idade, se apoiava num poste. Ela usava roupas curtas e provocantes, se exibindo para quem passava, deixando claro suas intenções.


Logo um carro de marca importada surgia e, aos poucos, se aproximou da garota. O motorista e ela travaram um diálogo impossível de ser ouvido e, quando ambos pareceram chegar a um acordo e ela levou a mão para abrir a porta do passageiro, se afastou repentinamente, como se visse algo assustador do outro lado da rua. Quando o motorista se voltou, ele só teve tempo de ver um pé se aproximando de seu rosto.


Após chutar o motorista, Teatral o arrastou para fora do carro e o jogou com o rosto na direção do asfalto da rua, dos bolsos da jaqueta dele, vários papelotes de drogas se espalharam. Achando que o criminoso desmaiou, o uniformizado se dirigiu para a garota, pretendendo lhe passar um sermão sobre os perigos da vida que ela escolhera e acabou não percebendo que o homem caído puxou uma arma.


O som do tiro ecoou na noite e ele levou a mão até o abdômen, percebendo que uma mancha vermelha começava a se formar em seu uniforme, além de ver que o tiro o trespassara e a bala se alojou na porta do carro.


Só então percebeu o olhar de medo da garota.


Antes que qualquer um dos presentes conseguisse sequer pensar, Teatral cobriu a distância que o separava do homem armado e, desferindo um potente chute em seu rosto, deixou-o realmente desacordado dessa vez. Em seguida ele saltou, ficando agachado no teto do carro, o rosto bem próximo da garota e falou entre gemidos de dor.


Teatral: Siga essa rua até um sobrado… Número 72… Quando uma mulher atender… Diga que foi o Teatral quem te mandou prá lá… Aaahhhh… Ela vai te ajudar a sair dessa vida… Do contrário…


A garota não esperou o final da frase, saindo correndo para fora da cena. O herói colocou a mão sobre seu ferimento, olhou mais uma vez para o traficante, deu um último chute na virilha dele e então também saiu de cena, com o corpo encurvado pela dor.


Descem as cortinas.


***


Sobem as cortinas.


O cenário volta a ser o do quarto do protagonista.


Um som veio do banheiro e logo Teatral reapareceu em cena, aparentemente sentindo muita dor. Ele tirou a máscara, jogando-a sobre a cama para, logo em seguida, após um longo suspiro, retirar o resto do uniforme, em meio a interjeições de dor.


Agora ele se ergueu, como se nada tivesse acontecido, o local onde antes estava cheio de sangue, devido ao ferimento de bala, agora estava limpo e não havia o menor sinal de que uma bala tivesse passado por ali.


O jovem jogou o uniforme dentro do guarda-roupa, foi até a cama, sentando-se e pegando em seguida o que parecia ser um retrato.


Sérgio: Mais uma noite, meu amor e, outra vez, quando me desfaço do personagem nada mais resta, nem ferimentos ou mesmo as memórias completas do que ele fez. Amanhã terei que recorrer aos jornais de novo. (ele pegou a arma outra vez, conferiu a única bala e recolocou na gaveta.) – Mais uma noite em que eu não pude me unir a você, mas amanhã é outro dia. Pois hoje, mais uma vez, foi apenas uma noite para o Teatral. (Ele se deitou e puxou um lençol sobre si)


As luzes se apagam aos poucos e a cortina se fecha pela última vez.



FIM


Epilogo.


Cara, mas o que diabos foi isso?


O que?


Esse sujeito. O cara é um baita combatente, detonou os bandidos, mas age como, sei lá, como se estivesse…


Numa peça de teatro? Teatral. O nome não te disse nada? Sério, meu. Como é difícil tocaias com novatos.


Desculpe, foi mal. Quando entrei pro grupo, eu achei que ia ficar só no serviço interno.


Bem-vindo à Agência Sonhar, novato. Num dia você tá se afogando em papelada, ou seguindo possíveis candidatos a agentes Ômega. No outro tá em outro planeta, tentando salvar a Terra, se afogando em gosma alien.


Tá zoando né? Diz que tá, por favor.


Xiu. Olha lá os tipinhos que estão seguindo o “nosso” herói. Com certeza Agentes do Leviathan…


E agora?


O que você acha? Pega as suas armas e vamos descer a porrada nesses desgraçados.



Fim do Epílogo.





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2 Comentários

  1. Como é bom ver esse texto tão reoletode significados pra mim, um depressivo crônico, republicado.

    A releitura, desse que considero um dos seus melhores , impactantes e mais sensíveis textos, nos traz fortes emoções.

    Não sei se tú crê nisso, mas como o nosso amigo Aldo gosta de dizer, ao seu lado, vários amigos espirituais te inspiraram a produzir algo que transcende a ficção.

    É um alerta e, ao mesmo tempo, uma mensagem de fé para quem lê.

    Todos, a exemplo do Teatral, podemos ser heróis ou vilões de nossas histórias.

    Mas, ainda sim, na solidso5do nosso quarto e dos nossos pensamentos, somos humanos e frágeis.

    O heroísmo do Teatral, mesmo sendo um ser atormentado por seus próprios fantasmas, é algo que nunca ficará datado.

    Teatral é aquele personagem que você nunca esquece.

    Passe o tempo que passar!

    Parabéns pela iniciativa!

    Vida longa ao Teatral!

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    1. Muito obrigado pela releitura e comentário.
      Muito me deixa feliz por ter conseguido criar um personagem e uma história que se tornaram tão marcantes.
      Agradeço meuito pela força

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