Etama - Vínculos. One-shot

 


Trago a vocês, queridos leitores, um novo universo de histórias, começando com uma one shot, que pode vir a se tornar um novo livro.

Eu já havia criado alguns cenários de fantasia, mas sendo em um Brasil alternativo, vivendo os primeiros momentos de uma colonização que não seria feita por Portugueses.

Juntei uma boa dose de nosso folclore com pitadas de ideias vindas de alguns animes que curto e cheguei a um resultado que, acredito eu, poderá agradar aos leitores tanto quanto me agradou como escritor.

Portanto, sem mais demora, convido todos a mergulhar comigo nesse novo mundo de aventuras.

Sejam bem vindos e... Boa leitura!



Etama.

Vínculos.


O continente de Etama sempre foi coberto por uma vasta e exuberante floresta, com poucas áreas onde é possível ver o sol através das folhagens das árvores mais altas, talvez apenas na região mais ao sul, onde se estendia por quilômetros um dos maiores desertos do planeta, conhecido como Mbaé-tyb-eyma, a terra dos filhos de Anhaguera.

Uma das maiores florestas era, sem dúvida, Itaíba, também conhecida como o lar da tribo dos Tabira, famosa por viver próximos da maior concentração das Calumbi, as árvores místicas que, trazendo em seu interior os cristais místicos Itaenga, em vez de folhas, tinham suas copas feitas de chamas esmeraldas.

Os Tabiras usavam a madeira dessas árvores para tudo que a magia delas era capaz de sustentar, tal como armas, armaduras, proteção contra invasores, até mesmo moradia, o que fez a tribo se tornar o centro de criação e desenvolvimento dos Guaranis, os guerreiros e guardiões de todos os Ayra Tupã, como a maioria dos habitantes humanos de Etama se chamavam.

Claro que tal honraria não era fácil de se conseguir, não era algo passado de pai para filho ou simplesmente adquirido por se ter nascido como um escolhido, não, quem quisesse se tornar um verdadeiro Guarani precisava passar pelo Kaukab.

Kaukab.

O rito de passagem em que os curumins, ao alcançarem a idade de dezoito anos, tentam se tornar um Guarani, ao se reunirem na orla de Mokaba, uma área de Itaíba onde as árvores sagradas eram tantas e tão próximas umas das outras, que as únicas fontes de luz provinham das folhagens, deixando o ambiente todo levemente esverdeado.

— Você conseguiu dormir essa noite?

— Nada. Fiquei olhando o teto da oca e imaginando o que nos espera.

Araúna era a melhor arqueira da tribo e vinha conversando animadamente com Japira, sua melhor amiga e a melhor em combate desarmado.

— Espero que a gente consiga, não me imagino cuidado das plantas ou outras das tarefas que não envolvam lutar.

— Você vai conseguir de qualquer jeito Araúna, já usa armas e essa é uma das dádivas do Kaukab… Já eu…

— Se você já derruba vários oponentes só com as mãos limpas, aposto que, qualquer que seja a arma, você será um dos mais poderosos Guaranis que a tribo já teve.

As amigas continuaram a conversar, uma tentando animar a outra, mas logo o papo se encerrou, conforme se aproximavam de um grupo com mais de quarenta jovens, todos se reunindo próximos da Mokaba, tendo diante deles as pessoas mais importantes da tribo.

Aimberê, o grande Cacique, se mantinha no centro do grupo, à sua direita estava Ecoema, a primeira mulher a se tornar pajé e um dos mais poderosos Guaranis de todos os tempos, Iabá.

— Não estou muito confiante nos candidatos desse ano, infelizmente parece que o longo período de paz amoleceu nossa juventude. Vejo muitos ou nervosos demais, ou totalmente despreocupados e, ah! Era o que faltava.

Um jovem ia se aproximando do grupo, causando um burburinho geral e vários comentários que, apesar de sussurrados, pareciam ecoar como um trovão por causa do silêncio que se abatera.

“É ele mesmo?” 

“O filho dos loucos que moram longe da tribo…” 

“Pensei que ele já tinha morrido…”

“É sério que deram para ele um nome que significa Guerreiro Protetor? Que piada…”

O rapaz mancava de uma perna, magra e de pele flácida, praticamente morta, se apoiando em um cajado velho e surrado, que ele usava desde os oito anos, quando as condições traumáticas de seu nascimento afetaram seu corpo e sua saúde.

Muito abaixo do peso, uma piada comum na tribo era o fato de todos se surpreenderem por ele nunca ter sido levado pelos ventos, ou por alguma harpia faminta, mas ele nunca desistia de, ao menos, tentar fazer o mesmo que outros curumins de sua idade. 

Depois de minutos, que pareceram durar uma eternidade devido ao fato dele precisar arrastar sua perna morta, o jovem finalmente se colocou diante do cacique. 

— Sou Naurú Mo'ã, filho de Iberê e Coaraci e peço humildemente permissão para participar do Kaukab.

— Garoto… — tentando conter sua irritação, Iabá se adiantava ao cacique e à Pajé. — Você faz ideia do que é realizado no Kaukab? Sabe dos riscos que realizar esse rito implicam? 

— Sei que, como meu pai sempre disse, se eu participar e passar, talvez, apenas talvez, as pessoas parem de me tratar como um imenso monte de bosta, por isso peço apenas a mesa chance que todos aqueles da minha idade tem.

O Guarani crispou a fronte, enquanto Aimberê e Ecoema tentava disfarçar um sorriso de simpatia pelo jovem e seu jeito de falar, obviamente herdado de seus pais.

— Olha aqui…

— Calma Iabá. — prevendo a explosão do velho amigo e conhecendo-o bem, o cacique tomou a palavra, se voltando para o jovem à sua frente. — Tem certeza de sua decisão? Sabe que as chances até de voltar vivo, quanto mais de conseguir se tornar um Guarani, são mínimas?

— Ou volto vivo e como um Guarani, ou morro e encerro esse ciclo eterno de dor que é minha vida, de qualquer jeito eu saio ganhando. 

— Sim, mas…

— E peço perdão por interrompê-lo Cacique, mas desde que parei de precisar dos meus pais para me limpar a bunda, sinto algo me chamando para a Mokaba. Perdi a conta das vezes que apanhei deles tentando entrar lá, por isso eu tenho que tentar descobrir o que é essa… Força… Que parece me atrair, não peço que me entendam, mas, se for preciso, apesar das dificuldades e da dor, me ajoelharei diante de vocês e irei implorar para entrar na floresta.

Um minuto de silêncio se passou, enquanto Aimberê fixava seu olhar no do jovem, percebendo algo como uma faísca, brilhando nos olhos castanhos claros de Naurú Mo'ã.

— Pois muito bem. Eu permito a sua participação. Que você possa sobreviver e descobrir o que precisa. — o cacique então abriu os braços e se voltou para todos os jovens à sua frente. — Que o Kaukab se inicie!

O grupo de jovens rapidamente se dispersou e vários deles, tentando mostrar sua força, praticamente voaram até os galhos das Calumbi, pretendo assim chegar o mais rápido possível às suas Obá'sab, as árvores que, se fosse vontade de Tupã, uniriam seu espírito com o do guerreiro escolhido, dando-lhe poderes além da compreensão.

Fazendo deles verdadeiros Guaranis. 

Claro que o último a adentrar a mata fechada da Mokava foi o desacreditado Naurú Mo'ã, que ainda deU uma última olhada por cima dos ombros, se surpreendendo quando, não apenas o cacique, mas também a pajé, sorriam para ele, numa forma velada de apoio.

Desse jeito, com a velocidade que sua perna morta lhe permitia, ele correu até sumir da vista dos três adultos que, cada um à sua maneira, torciam para que a maioria dos jovens voltasse como um Guarani.

Eles sabiam que os filhos de Anhanguera, o diabo velho que, aparentemente, havia deixado aquele mundo, estavam cada vez mais fortes e ardilosos, ainda mais agora que, segundo os relatos de alguns guerreiros, que viveram apenas o tempo necessário para transmitir suas histórias de horror, davam conta de que um novo senhor dos demônios havia surgido. 

Ânang, a Alma do mal, era como o estavam chamando. 

Por isso a busca por Guaranis fortes era cada vez mais urgente.

Alheio às preocupações dos chefes da tribo, um determinado Naurú Mo'ã caminhava com o máximo de orgulho que sua condição permitia, uma vez que muitos dos demais jovens, principalmente os que pulavam de galho em galho, faziam questão de expô-lo a toda sorte de pilhéria que podiam imaginar. 

Mais de uma vez o pobre rapaz se viu como alvo de uma chuva amarela e fétida, acompanhada pelo riso de escárnio dos outros, mas ele havia prometido a seus pais que não desistiria. 

Ou retornava como um Guarani ou não retornaria.

"Não precisa chegar a tanto filho..." A voz de sua mãe ecoava em sua mente, conforme ele alcançara um pequeno riacho e usava as águas não apenas para aplacar sua sede, o Kaukab havia começado a várias horas, mas principalmente para se lavar "Para mim basta que você volte vivo... Acharemos outra forma para que você alcance seus sonhos..." 

"Deixa o menino... Nós dois sabemos que ele não vai desistir…" o pai de Naurú Mo'ã era mais firme e severo nas palavras, mas o jovem aprendera a reconhecer um grande amor e orgulho dele em meio àquele modo de falar "Ele puxou isso de você. Essa teimosia capaz de mudar o mundo... E é exatamente isso que ele vai fazer." 

Tendo o apoio dos pais a impulsioná-lo, o rapaz seguia caminhando a esmo, a noção do tempo perdida pela dificuldade de ver a luz do Sol, até que, finalmente ele sentiu uma fisgada na base da nuca, algo que parecia forçar seu corpo para a esquerda do caminho por onde ele seguia. 

Tendo aprendido com seus pais a seguir esse tipo de intuição, ele jamais confirmaria, mas em seu íntimo orava com todas as forças para os deuses, para que pudesse se tornar um Guarani.

Tendo passado a vida inteira mergulhado em dor física e psicológica, Naurú Mo'ã não resistiria a continuar vivendo daquele jeito, pois ele via como as pessoas agiam com e, pior, como seus pais eram tratados por causa dele.

Não, voltar como o fraco filho dos loucos da tribo não era uma opção. 

Ao entrar em uma área ainda mais escura da floresta, onde as únicas fontes de iluminação eram os veios luminosos dos troncos das Calumbi, o jovem começou a ouvir ganidos baixos.

Um animal devia estar ferido por ali, o que era uma péssima combinação, pois animais nesse estado, geralmente, eram mais perigosos.

Ainda assim a sensação de que devia continuar seguindo em frente era forte demais para ser ignorada e, após mais alguns passos, Naurú Mo'ã se deparou com uma cena terrível.

Vários corpos destroçados de Jaguares Iaguara, maiores que as onças normais e com imensas presas, jaziam no fundo de um barranco, todos pareciam emanar uma névoa escura e fétida.

Um sinal claro de possessão dos Emarãs, os servos mais fracos de Ânang, usados muitas vezes para se infiltrar entre os grupos de Guaranis e, usando de enganação e truques sujos para minar os laços entre os guerreiros, muitas vezes, conseguiam fazer um atacar o outro.

Era o que parecia ter acontecido ali, mesmo sem que o jovem tivesse ouvido uma vez sequer sobre animais sendo vítimas dos demônios, mas ele mal teve tempo de continuar pensando sobre e um novo gemido chegou até seus ouvidos.

Com certeza Naurú Mo'ã não era conhecido pela prudência, por isso desceu em meio à carnificina e se colocou a procurar quem parecia estar ainda vivo ali, não se podia descartar que algum dos outros jovens pudesse ter se envolvido com o que quer que tivesse acontecido ali.

Manter os Ayra Tupã vivos e em segurança era, afinal, a função primordial dos Guaranis, por isso o jovem deu mais alguns passos, até se assustar com algo que pulara em seu peito, fazendo-o se desequilibrar e cair sobre os corpos de alguns Iaguara.

Já se dava como morto quando, ao reunir coragem para abrir os olhos, ele viu um pequeno e muito ferido filhote, tentando ficar em pé nas quatro patas e parecer amedrontador.

— Desculpe amiguinho, posso não ser o melhor dos guerreiros, mas, ainda assim, eu dou conta de alguém tão pequenino e…

A frase foi interrompida quando um brilho azulado chamou a atenção de Naurú Mo'ã e sua voz sumiu diante da imagem de um imenso Jaguar Iaguara, o maior que ele vira na vida, não que tivesse visto muitos, mas nem nas histórias que ele ouvira na vida alguém tinha citado um bicho daquele tamanho.

Com certeza uma das Tupanatinga, criaturas que assumiam forma animal, tocadas diretamente por Tupã, antigas guardiãs da natureza e que raramente se permitiam ser vistas por olhos humanos.

O animal sagrado emitia uma fraca luz azulada pelo corpo que, especialmente dos vários e profundos ferimentos, parecia ir se dispersando pelo vento.

O jovem ficou paralisado conforme a criatura de aproximava e, após dar uma carinhosa lambida no filhote, que finalmente parara de tentar assustar Naurú Mo'ã para começar a dormir, se voltou para o jovem e encostou de leve sua testa na dele.

Uma sucessão de imagens, odores, dor e tristeza se apossaram da mente dele, que fechou os olhos para escapar daquilo que não compreendia, mas, ainda assim, ele viu tudo o que acontecera.

O Tupanatinga brilhante era, na verdade, uma fêmea, que passeava com seu filhote quando foram emboscados por outros jaguares, esses, assim como o rapaz suspeitava, haviam sido possuídos e partiram de imediato para o ataque.

Não foi uma luta longa, mas por causa da superioridade numérica e ocupada protegendo seu filhote, a Iguara fora mortalmente ferida e em breve morreria, não podendo aceitar, no entanto, que seu filhote acabasse sozinho, sendo uma isca fácil para outros monstros.

O pedido foi sentido diretamente nos pensamentos de Naurú Mo'ã, que se ergueu, com muita dificuldade, claro, com o pequeno jaguar no colo, prometendo que, dali em diante o pequenino seria Anama, família na língua dos Ayra Tupã.

O jovem realmente duvidou da própria sanidade, ao ter a impressão que que a criatura sagrada sorria enquanto finalmente seu corpo se dispersou pelo vento, deixando seu filhote nos braços do mais improvável dos guardiões.

Sentindo-se exausto após finalmente conseguir subir pelo barranco, com o ainda desacordado Iguara num dos braços e sentindo que a dor em sua perna morta nunca fora tão agonizante, Naurú Mo'ã mal teve tempo de recuperar o fôlego, quando um rugido, mais alto do que qualquer som que ele já ouvira na vida, o alcançou.

Usando de uma força que ele jamais pensou que teria, o rapaz evitou uma queda e usando de todo juízo que ele não tinha aprendido com seus pais, em vez de dar meia volta e correr para o mais longe dali, fez exatamente o contrário.

"Os outros!"

Foi esse pensamento, ao conseguiu distinguir gritos de horror e súplicas desesperadas por ajuda, que fez com que o jovem ignorasse seu próprio instinto de sobrevivência, para tentar ajudar quem estivesse precisando.

Ele quase se arrependeu quando finalmente chegou ao local de onde os gritos vinham.

As Calumbi apresentavam uma madeira que, para os Ayra Tupã, era quase indestrutível, não apenas por sua constituição mística, mas também pelo fato, raramente visto por olhos humanos, de que elas eram capazes de se mover, evitando qualquer tipo de força quer pudesse lhes causar dano.

Por essa razão a maioria das tribos de Ayra Tupã preferiam montar suas aldeias em florestas como a Itaíba, que geravam principalmente uma segurança total para que eles pudessem viver em relativa paz.

Esse foi o principal motivo para a surpresa e posterior paralisia em que Naurú Mo'ã se encontrava, ao ver incrédulo, uma imensa criatura que, ao atacar todos os jovens que participavam do Kaukab, conseguia dobrar e até mesmo partir algumas das Calumbi.

Terror e desespero eram sentimentos comuns quando se encontrava com um monstro daqueles em seu estado e tamanho normais, mas ver um deles, com quase oito metros de altura, olhos escuros como a noite e exalando um fedor que lembrava o que ele havia sentido no barranco dos Iaguara, seria o suficiente para enlouquecer qualquer um.

Aquele Mapinguari estava, com certeza, possuído por um Emarã.

Uma das piores combinações de ameaça que se podia imaginar.

Por isso era compreensível que aqueles jovens, todos tendo os sonhos e  esperanças de se tornar um Guarani, padeciam sob o peso das patadas da gigantesca criatura, que mal parecia estar ciente de suas presenças, era como se ele apenas balançasse os braços, o que, por si só, já era devastador para aqueles que não conseguiam se proteger ou fugir.

Foi um desses movimentos que despertou Naurú Mo'ã de seu torpor, ao ver que o monstro estava indo na direção de Araúna e Japira que, sem escolha ou chance, apenas se abraçaram esperando pelo fim que se aproximava rápido.

Dois gritos ecoaram pelo ar, o primeiro um desafio, que chamou a atenção do monstro, o segundo de dor, quando o desprezado filho do casal de loucos da tribo, sem pensar em mais nada, atraiu para si o ataque mortal do Mapinguari.

O golpe foi dado com as costas do imenso punho da criatura, evitando assim que o jovem tivesse o corpo retalhado pelas garras afiadas, mas o impacto inicial partiu boa parte dos ossos do corpo dele, que terminaram de se quebrar após atingir algumas Calumbi, terminando por cair violentamente em meio a uma das raras clareiras, onde sua pele voltara a ser banhada pela luz do Sol.

A dor era tamanha que foi negado a Naurú Mo'ã a dádiva da inconsciência, sua mente uma confusão total, mal percebendo que o pequeno Iaguara lambia seu rosto, uma forma primitiva de tentar curar seus extensos ferimentos.

Os ouvidos do rapaz sangravam, o que dificultou para ele identificar o estranho som de algo se movendo, abrindo caminho pela terra e, repentinamente, uma sombra se colocou entre ele e a luz do Sol, trazendo um pouco de alívio.

Encontrando forças que ele jamais pensou ter, Naurú Mo'ã ergueu a cabeça e percebeu uma Calumbi cuja raiz, que parecia prestes a sair do solo, se estendia na direção de sua mão direita.

— Obá'sab…

Ignorando a dor de estender seu braço, que apresentava dezenas de fraturas, o rapaz sentia o mesmo formigamento que o guiara pela floresta, alguns diziam que se tratava do chamado da árvore que teria escolhido seu Guarani.

Para ele, naquele momento, era esperança.

Bastou um toque de leve, um roçar da pele de seu dedo indicador na ponta da raiz da Calumbi, enquanto o Iaguara continuava em suas tentativas de curá-lo, que o mundo de Naurú Mo'ã foi envolvido por chamas verdejantes.

— Mas o que é isso?

Iabá deu voz à surpresa que tanto ele, quanto o cacique Aimberê e a pajé Ecoema tiveram ao presenciar, saindo bem do meio da floresta, o que parecia um imenso jorro de fogo verde, algo nunca antes presenciado durante um Kaukab.

O experiente Guarani não precisou da óbvia ordem de seu líder, partindo de imediato para o local, usando o alto das Calumbis para se mover ainda mais rápido.

No meio do caminho ele ouviu o típico som de raios e trovões, estranhando o fato, pois o dia estava claro até aquele momento, por isso acelerou sua corrida, parando apenas ao alcançar o local da batalha

O que ele viu deixou-o sem palavras, até se aproximar de um dos poucos sobreviventes, Japira, que entre tentativas de recuperar o fôlego e ainda ela própria sem acreditar no que testemunhara, se colocou a revelar o que havia acontecido.

O Mapinguari se aproximava dela e dos poucos sobreviventes que ainda restavam na clareira, todos haviam sido pegos de surpresa pela chegada do monstro e ela mesma e sua melhor amiga só não haviam morrido por causa da chegada de Naurú Mo'ã, que fora jogado longe após receber um ataque direto.

Enquanto pedia perdão aos deuses e se preparava para encontrar Tupã, o Mapinguari voltou sua atenção para Japira e sua amiga, que jazia desmaiada em seus braços.

As preces pareceram ser ouvidas pelo deus, uma vez que a imensa coluna de fogo verde, que se ergueu aos céus, fez com que o monstro perdesse o interesse nas amigas e nos poucos sobreviventes, todos praticamente se arrastando para longe, mas tentando ver o que estava acontecendo.

Quando as chamas dispersaram, restou uma imensa nuvem de fumaça, que foi diminuindo conforme o monstro abanava com sua pata imensa, até que foi se formando a imagem de uma silhueta humana ao lado de outra, que lembrava um grande animal quadrúpede.

O Mapinguari não hesitou e lançou seu punho contra a fumaça, num golpe que estremeceu o chão, o que acabou por somar à fumaça uma dose generosa de terra, poeira e destroços variados.

Sem aviso nenhum uma gargalhada insana ecoou pelo ar e o que quer que estivesse dentro da nuvem de fumaça e parecia ter segurando o golpe do monstro, desapareceu, causando uma pequena explosão, que terminou por desfazê-la de vez.

Mais rápido do que os olhos podiam acompanhar, algo subiu pelo braço do monstro, que ainda permanecia com o punho abaixado e, em questão de segundos, o Mapinguari moveu sua cabeça como se tivesse sido atingido por um golpe impossivelmente forte o suficiente para machucá-lo, o que se tornou claro quando ele terminou cuspindo um dente.

Tendo finalmente sido atingido, o monstro demonstrou medo pela primeira vez e enquanto ele dava hesitantes passos para trás, uma figura muito pequena, se comparada ao monstro, se moveu pelo ar, pousando a poucos metros de distância.

Mais uma vez a risada vigorosa se lançou aos ares e só então Japira conseguiu ver que se tratava de um Ayra Tupã que ela não conhecia.

O estranho estava nu, seu corpo era musculoso, exibia um porte imponente, enquanto continuava rindo, as mãos se abriam e fechavam, deixando clara a tensão de quem havia apenas começado a lutar.

Algo chamava ainda mais a atenção, pois em seu peito, na altura do coração, havia algo que lembrava um pedaço de Calumbi e, em seu centro, cristais Itaenga emitiam um brilho esverdeado.

— Eu sou Naurú Mo'ã, o Guarani das Tempestades! Ybytu-guâsu!

Ao gritar o nome que acionaria os dons únicos da Nhyâ, a formação de madeira e cristais em seu peito, imediatamente se espalhou pela parte esquerda de seu tronco, indo do pescoço à cintura, bem como cobrindo também seu braço, com pequenas formações pontiagudas.

Os olhos então ficaram negros, com alguns traços esverdeados que refulgiam como os detalhes da amadura Guarani que surgira.

Ele então ergueu seu punho direito na direção do Mapinguari que, sem outra ideia de como reagir àquela ameaça, que não fazia sentido por vir de um ser tão pequeno, tentou outra vez desferir um potente soco, vindo de cima para baixo, numa velocidade impressionante.

Tupãsununga!

Uma tempestade surgiu encima da criatura, que nem teve tempo de registrar o ocorrido, pois enquanto seu punho avançava, uma espada surgiu na mão esquerda do Guarani recém-nascido e, após ele flexionar as pernas, mais uma vez, pareceu que ele desaparecera, deixando para trás uma nuvem de poeira erguida e o som de uma explosão.

Um urro de dor ecoou pelo ar, quando algo que não podia ser acompanhado por olhos humanos, subiu pelo braço que descia, causando um profundo corte que, ao chegar na altura dos ombros, seccionou o membro perfeitamente do restante do corpo.

O Mapinguari só então viu Naurú Mo'ã saltar de seu ombro, parecendo até mesmo que ele flutuava no ar, mas assim que a impressão passou e ele viu o guerreiro caindo, o monstro abriu a bocarra que trazia em seu ventre, deixando à mostra fileiras de dentes serrilhados e diversas línguas de pontas bifurcadas, além de uma névoa fétida, deixando clara a possessão por um Emarã poderoso o suficiente para conspurcar a criatura de dentro para fora.

Sem demonstrar medo e ainda no ar, o guarani ergueu sua arma aos céus, clamando pela força de Tupã.

Amã-tiri!

Dezenas de relâmpagos desceram dos céus, acompanhando Naurú Mo'ã, conforme ele seguia na direção da bocarra aberta do monstro que, assim que seu inimigo estava ao alcance, o abocanhou.

Em seguida seu imenso corpo foi eletrocutado, espalhando relâmpagos de dentro para fora do monstro, que foi caindo lentamente, conforme a vida ia se esvaindo de seu imenso corpo.

Os sobreviventes, assim como Japira, contaram que foram protegidos dos raios pelo imenso Iguara que acompanhava o guerreiro e que havia se mantido à margem da luta até ali.

Iabá mal conseguia acreditar no relato, mesmo vendo o animal que realmente impressionava pelo tamanho e ficava andando ao redor do monstro abatido.

Logo o cacique Aimberê e a pajé Ecoema chegavam ao local, com vários curandeiros, que se colocaram a cuidar dos feridos, enquanto Iabá ainda tentava entender o que havia acontecido.

— Mas e onde está esse novo Guarani? Onde está Naurú Mo'ã, se é que é ele mesmo…

Naquele momento a cabeça do Mapinguari se mexeu, o que fez todos os presentes se sobressaltarem, com Iabá tomando a frente do grupo, se preparando para acionar seus dons, mas logo percebeu que não seria necessário.

A cabeça do monstro se movia de forma estranha, uma vez que seu pescoço acabara de ser separado do corpo, por um Guarani que, coberto de sangue e entranhas, vinha se aproximando e arrastando seu troféu, que foi deixado diante dos responsáveis pelo Kaukab.

— Olha só Ykeyra Iabá! Acho que não sou mesmo um monte de bosta afinal e…

A frase ficou sem um final, pois no instante seguinte Naurú Mo'ã perdia os sentidos e caía de cara no chão.

Dias se passaram, quando finalmente o mais novo e improvável Guarani acordou no chão de uma oca conhecida.

Ayra!

Sy!

O abraço de sua mãe era ainda mais perigoso do que os golpes do Mapinguari, por isso, com muito jeito e cuidado, ele foi se desvencilhando dela, evitando ser sufocado enquanto seu pai permanecia de braços cruzados na entrada.

Tup. Eu voltei.

— Eu não tinha dúvidas pequenino, mas, acho que não posso mais te chamar assim, não é?

O guerreiro se levantou vagarosamente, olhando para seu corpo, alterado pela união com uma Calumbi, mal se lembrando da dor constante que sentia, antes de finalmente se tornar um Guarani.

Ele seguiu até o lado de fora, sua mãe ainda agarrada em seu braço direito, mas logo ela precisou largá-lo, enquanto um filhote de Iaguara se aproximou, fazendo com que o rapaz se abaixasse para acariciá-lo na cabeça.

— Você também mudou não é amiguinho? Acho que as coisas vão ficar interessantes daqui para frente.

— Bom saber que você pensa assim meu jovem.

— Cacique? Hã… Pois é…

Sem graça por alguém tão importante estar ali, uma vez que raramente qualquer morador da tribo se dava ao trabalho de ir até o que era conhecido por todos como a casa dos loucos, Naurú Mo'ã coçava a cabeça, enquanto pensava em como falar com Aimberê.

— Agora que acordou, podemos começar seu treinamento sério…

Iabá, o mais velho e experiente Guarani da tribo chegava, caminhando ao lado da Pajé Ecoema.

— Você deixou uma marca impressionante meu jovem, eu nunca antes vi o nascimento de um Guarani como o seu. Precisamos, além do treino, descobrir como a Nhyâ se formou justo no seu peito, um lugar inédito em nossa história e…

A frase da Pajé foi interrompida quando um jovem curumim se aproximou correndo e gritando.

— Iabá! Iabá! A vila Taperá foi atacada por caçadores de gente!

— Caçadores? Onde fica essa vila?

— Ao norte daqui e…

— Ybytu-guâsu!

Dizendo isso o jovem Guarani executou um prodigioso salto, levando-o rapidamente a sumir de vista pelos presentes.

— Espera! Naurú Mo'ã!

Iabá coçava a cabeça, refletindo a forma como os demais pensavam a respeito da impulsividade do jovem, mas não precisaram esperar mais que alguns instantes, antes dele voltar apressado, pousando perto do grupo.

— Onde fica o norte mesmo?

— Eu já ia te mostrar o caminho rapaz! Vê se te controla…

— Você não pode ir pelado assim filho, toma aqui.

Rapidamente o jovem guerreiro vestiu os trajes que sua mãe havia feito, um deles exibia uma cor alaranjada e manchas com as de uma onça.

— O próprio Iabá trouxe um pobre Iaguara morto e fiz isso para você. O pequeno Oryba aprovou.

— Escolheu o nome do meu companheiro animal?

— Escolhi mal?

Naurú Mo'ã olhou para o pequeno filhote, que parecia realmente estar alegre e sorrindo.

— Não, Foi uma escolha perfeita. Dessa vez não fique para trás… Oryba. Vamos!

Gargalhando alto, ele partiu para uma nova missão sem se despedir, seria seu costume pelos anos seguintes, uma vez que, sem dizer adeus, Naurú Mo'ã, o Guarani das Tempestades, sempre faria de tudo para voltar para aqueles que ele amava.

— Sim… — o Cacique Aimberê exibia um sorriso de completa felicidade e satisfação. — Isso vai ser muito interessante.

Apenas o começo.

Glossário.

Segue uma lista das palavras que encontrei em dicionários online da língua Tupi, que usei como base para os termos que aparecem na história, alguns por sua sonoridade, outras pela aproximação do que eu queria nomear.

Etama: Terra.

Mbaé-tyb-eyma: Terra Estéril

Anhaguera: Espírito maligno, diabo velho

Itaíba: Ita (pedra) + iba (ruim, dura), pedra ruim ou dura. O nome está associado a uma árvore conhecida como “Pau-ferro”, também chamada de itajiba, itaúba.

Tabira: Nome de um chefe da tribo dos Tobajara ou Tabajara.

Calumbi: Nome popular de uma árvore – o mesmo que Jurema-preta.

Itaenga: Ita (pedra) + nheeng (fala) = pedra que fala.

Guarani: Guerreiro.

Ayra Tupã: Filho de Tupã.

Kaukab: Crescer.

Mokaba: Arma de fogo.

Araúna: Pássaro escuro.

Japira: Mel 

Aimberê: Duro, Rígido.

Ecoema: Manhã.

Iabá: Arrogante, prepotente, orgulhoso.

Naurú Mo'ã: Bravo, herói

Iberê: Rio raso.

Coaraci: Sol, verão.

Obá'sab: Abençoar.

Ânang: Alma do mal.

Jaguares Iaguara: Onça.

Emarãs: Aquele que é maledicente 

Tupanatinga: Deusa branca.

Anama: Família.

Mapinguari: Monstro do folclore brasileiro, em alguns casos parece uma preguiça gigante, mas com uma bocarra cheia de dentes na altura do estômago.

Ybytu-guâsu: Tempestade, ventania

Nhyâ: Coração. 

Tupãsununga: Trovão.

Amã-tiri: Raio.

Ykeyra: Irmão mais velho.

Ayra: Filho.

Sy: Mãe.

Tup: Pai.

Taperá: Andorinha.

Oryba: Alegre.

 

 Galeria de Imagens.

Naurú Mo'ã e Oryba








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2 Comentários

  1. Grande Norberto !

    Em primeiro lugar , te dou as boas vindas para esse seu retorno ao nosso blog , que certamente, trará muitos frutos.

    Seja bem vindo ao time Mindstorm!

    Uma reestreia maravilhosa e emblemática, onde você se esmerou para nos apresentar toda a rica mitologia dos nossos povos originários, os indígenas.

    Um texto profundo e tocante, que reforça a grande verdade universal que diz que "os humilhados, serão exaltados".

    O curumim deficiente, lutando contra tudo e contra todos e, principalmente contra si mesmo, mostrou a resiliência dis fortes, vencendo suas limitações físicas, e com muito mérito, sendo escolhido por Tupã como o "guerreiro das tempestades".

    Um trabalho primoroso e tocante que revigora quem se encontra desanimado com as dificuldades da vida.

    Acima de tudo, um texto genuinamente motivacional , no bom sentido da palavra, já que esse termo tem sido deturpado por charlatães modernos...

    Mas, isso é outra história.

    Meus parabéns!

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    1. Valeu mesmo pela leitura e comentário.
      Eu realmente quis apenas cirar um personagem cujo passado teria de ser superado para se tornar alguém diferente... Juro que não houve tentativa de criar um texto motivacional... fiz isso sem querer... hehehehe
      Mas fico muito feliz por você ter curtido. Agradeço de coração!

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