6. Interlúdio da Desgraça II.

 


E essa lei de Murph hein?


Boa sexta! Que o mundo não acabe hoje.

Nesse capítulo, tentei mostrar outros acontecimentos paralelos aos narrados no arco do Fred.

Tomara que goste... Portanto... Sem mais delonga...

Boa leitura!



6. Interlúdio da Desgraça II.


"Estou atrasado... Estou atrasado..."


Tudo o que Anderson Soares queria era comprar o carro com que sempre sonhara, um SUV, chegar cedo para pegar sua esposa e filha na Avenida Paulista e aproveitar o feriadão para, saindo sexta-feira perto das seis da tarde de São Paulo, conseguir chegar na praia a tempo de curtir o amanhecer de sábado.


Óbvio que nada saiu como ele quis.


Perto da hora em que ele iria sair do escritório de advocacia onde trabalhava, um cliente chegou sem hora marcada, trazendo problemas tributários que poderiam esperar tranquilamente até segunda, mas como o senhor Jones, no alto de seus setenta anos, era um dos mais antigos e melhores clientes, Anderson precisou dar a ele sua atenção total.


O tempo passou moroso, enquanto o advogado tentava demonstrar interesse no que lhe era relatado, mas não conseguiu evitar, primeiro longos bocejos e, com o avançar das horas, a falta total de interesse para com o caso do idoso.


Percebendo finalmente o descaso de Anderson, o senhor Jones pediu para falar com o superior dele, desejo esse que foi prontamente atendido, com um esbaforido advogado acompanhando o idoso, sem sequer reparar em como seu chefe parecia pálido, na verdade com uma coloração acinzentada e, caso tivesse prestado mais atenção, ele veria que o senhor Nogueira parecia estar soltando um tipo de vapor pelo colarinho do terno.


O foco de Anderson agora era ir o mais rápido possível até a concessionária, pegar seu carro e até a Avenida Paulista, onde combinara de encontrar a esposa e o filha, onde esperava surpreender as duas com o carro novo e os planos para ir para a praia.


Mais uma vez, para piorar a dor de cabeça crescente que o advogado ia sentindo, assim que chegou na concessionária, os computadores começaram a apresentar uma lentidão absurda, atrasando ainda mais a saída dele, que continuava ignorando tudo ao redor.


Até mesmo as notícias, que passavam em algumas televisões, espalhadas pelas áreas de espera da loja, falando sobre um surto mundial de um tipo de vírus da raiva, que havia sofrido uma mutação, se tornando algo muito mais mortífero, acabaram totalmente ignoradas.


Quando finalmente ganhou as ruas de São Paulo já passava das dezoito horas, deixando Anderson e seu novo carro atolados no já caótico tráfico da cidade, pior ainda por estar em plena hora do rush.


Finalmente o advogado percebeu que algo estava acontecendo, ao ver que muitos motoristas, após caírem em um congestionamento absurdo, desciam dos carros e começaram a correr de forma totalmente aleatória pelas ruas laterais.


Contando muito mais com a sorte, do que com habilidades de motorista propriamente ditas, Anderson foi evitando ficar preso em meio ao mar de carros, pelo menos até que um maluco, que corria atrás de duas jovens, ambas parecendo estar em idade escolar, acabou por atingir com força a lateral dianteira do carro.


Ô Filhadaputa! — ele então desceu do carro, disposto a dar uma lição no provável pedófilo, mas não apenas por estar correndo atrás das meninas, mas muito mais por ter acertado seu novo xodó. — Vou chamar a polícia e...


A frase morreu na garganta de Anderson, assim que o sujeito ergueu o rosto, acinzentado, com dentes à mostra e soltando um vapor quente e fétido da boca escancarada, dando um salto na direção de sua nova presa.


Com uma agilidade impressionante, nascida mais do susto, do que da vida extremamente sedentária que ele levava, Anderson conseguiu se desviar do ataque, derrubando o zumbi longe o suficiente para saltar dentro do carro e dar a partida.


O monstro acertou o vidro da janela do motorista com violência, os dentes tentando chegar à carne que tanto ansiava, deixando uma baba esverdeada escorrendo, conforme suas tentativas eram frustradas.


Putaqueopariu!


A interjeição exprimia perfeitamente como ele estava se sentindo naquele momento, enquanto finalmente disparava numa corrida, o coração batendo apressado, primeiro pela situação bizarra em que se encontrava, mas depois, para piorar tudo, quando a constatação, de que inferno que se abatera sobre a Terra não ameaçava apenas a ele, o atingiu como um soco na boca.


Joyce! Nicole!


Sua mulher e filha, respectivamente, que deveriam estar na Avenida Paulista, esperando-o diante de uma sorveteria, na rua oposta ao do Edifício Baluarte, onde ele pediu para que elas esperassem por ele.


Foi assim que a mais desesperadora corrida da vida de Anderson Soares se iniciava.


O GPS do celular estava inutilizado, por isso ele precisava contar apenas com sua lembrança e anos dirigindo pelo trânsito de São Paulo, pegando ruas alternativas, entrando até na contramão em alguns casos, acabando por passar por cima de vários zumbis que ficavam em seu caminho, ao menos, ele esperava, que todos que atropelou fossem mesmo os monstros.


Ao dobrar uma esquina não conseguiu deixar de frear, ao ver uma senhora correndo de alguns zumbis, com um pequeno pacote nos braços, um bebê, Anderson cogitou, por isso, mesmo com sua urgência, ele conseguiu parar o suficiente para que ela entrasse no banco de trás.


Obrigado meu filho... Agradece ao moço Fifi...


Fifi?


Qual não foi a surpresa quando, ao olhar por cima do ombro, Anderson via uma pequena e encardida cachorrinha latindo fino para ele.


O advogado então teve uma crise nervosa de riso, errando por pouco a traseira de um ônibus, cujo interior revelava uma carnificina, enquanto vários monstros atacavam as pessoas que, presas lá dentro, não tinham a menor chance de escapatória.


Um silêncio pesado caiu dentro do SUV, que seguia ainda de forma apressada para seu destino, Anderson rezava em seu íntimo para que sua esposa e filha permanecessem em segurança até ele chegar.


Tão concentrado estava que não ouviu quando a senhora o chamou algumas vezes.


Por favor... — ela se encolheu, abraçando sua cachorrinha, assustada com a expressão que Anderson fez ao desviar a atenção das ruas para ela. — Pode nos deixar nessa esquina... Minha casa fica ali perto... Por favor...


Após uma longo suspiro de impaciência, deixando claro o quanto ele estava arrependido por ter que parar duas vezes, uma para ajudá-la e agora para deixar a infeliz em casa, como se ele fosse um uber e o mundo não estivesse indo para o inferno, Anderson parou o mais perto possível do local indicado e assim que a senhora e sua cachorrinha desceram e fecharam a porta do carro ele partiu dali a toda velocidade.


"Me esperem meus amores... Papai tá chegando..."


O caos comum da cidade, naquele horário, estava ainda pior, era impossível avançar sem acertar outros veículos, ou mesmo pedestres, fossem ou não zumbis.


A cada segundo a angústia de Anderson só crescia e suas lágrimas corriam fartas, quando ele finalmente alcançou o local onde deveria se encontrar com sua esposa e filha.


E lá estavam elas.


O alívio, por ter reconhecido a blusa que dera para a esposa no último dia das mães, foi sendo substituído pelo total desespero, quando aquela que um dia fora sua esposa, se voltou para o som do carro que freava perto dela.


Joyce exibia a pele cinza dos monstros, os dentes à mostra pela falta dos lábios, um de seus seios já não existia, os restos misturados a um imenso ferimento em seu flanco direito.


Mesmo naquele estado, entretanto, na mão direita ela trazia sua pequena filha Nicole, o que fez a pouca sanidade de Anderson se esvair ao notar o estado em que sua filhinha havia ficado após se transformar.


Sem nem perceber que um filete de baba escorria por seu queixo, Anderson abriu seu carro, ignorando o fato de ter deixado a chave no contato de ignição, andando com passos trôpegos na direção daquelas que o inferno havia arrancado dele.


Sem nenhum sinal de medo, sua mente estava tão fragmentada como sua vida que ele percebeu finalmente que tudo o que achava importante, como carros ou a promoção que nunca chegava na firma, nada mais significavam naquele momento.


Quando finalmente ele as alcançou, as duas saltaram sobre ele, como faziam no passado, mas ao invés de abraços e beijos, houve mordidas.


Muitas mordidas.


Horas depois os três se ergueram, a pequena entre os dois adultos, todos de mãos dadas, começaram a cambalear, por coincidência ou não, seguindo na direção do tão distante mar.


Para trás ficou o SUV que Anderson tanto desejara em vida, para que um jovem estagiário, em total desespero, pudesse seguir em uma perigosa viagem para tentar salvar sua mãe.


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1 Comentários

  1. Pqp!!!
    Não há termo mais apropriado!

    Não bastasse estar tudo conectado com o primeiro personagem da história, conseguimos sentir na leitura , todas as sensações e emoções vividas e sentidas por Anderson Soares.

    O recurso de contar a mesma história sobre diversas pesrspectivas , propicia essa sensação, aumentando a carga dramática do eventotrágico em si.

    Realmente, a forma como o fim do mundo e a invasão zumbi ocorreu , ficou bem crível, factível e terrivelmente assustadora.


    A iminência de se perder aquilo que se mais ama, uma vez mais foi soberebamente descritro.

    Os perrengues, os contratempos, a perspectiva frustrada de levar a familia na praia no carro novo que acabara de adquirir.

    Por fim, a desgraça completa, ao se tornar zumbi.

    Parabéns de verdade!

    Estou empolgado com essa história!

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