Terra Zenith - Resgate - Chamas Internas é uma one-shot que apresenta a mais recente versão daquele que posso chamar de meu principal personagem, um que me acompanha a muito tempo.
Nessa versão o Resgate é apresentado como Jonas Nogueira, um ex-capitão dos Bombeiros que, após ter seus poderes despertados, começa a atuar como um herói cujo principal objetivo é salvar vidas acima de tudo.
Essa one-shot, já publicada em outros sites, dá o pontapé inicial para as histórias do universo que batizei como "Terra Zenith", onde vivem e se aventuram heróis e vilões nos moldes de universos como os da Marvel e DC, mas cujas principais histórias se passarão no Brasil.
Seja bem vindo então a esse novo universo.
Espero que goste do que vai ver.
Portanto... Sem mais... Boa leitura!
Os pulmões ardiam.
Ainda assim ela não a largava.
Dos olhos grossas lágrimas tentavam, em vão, lavar a sujeira de seu rosto.
E ela continuava a segurar o que tinha de mais importante em sua vida.
Repentinamente os estalos da madeira, das telhas de zinco e de tudo o mais que fora usado para levantar o barraco, foi ficando mais e mais alto, deixando claro que logo o botijão de gás acabaria por explodir, como ela ouvira acontecer nas casas vizinhas.
Ainda assim dona Celeste mantinha o pequeno pacote, embrulhado num lençol molhado, firmemente abraçado ao peito, rezando todas as orações que lhe vinham à mente, pedindo para que, mesmo que ela não sobrevivesse, que sua queridinha escapasse daquele inferno.
Ela mal ouviu a explosão, pois as chamas vieram para cima de seu corpo numa velocidade impressionante, o medo e a certeza da morte a forçaram a fechar seus olhos e aguardar o fim certo.
Quando a esperada sensação de dor deu lugar a um frescor inesperado, Celeste finalmente abriu os olhos, percebendo espantada que o verdadeiro inferno de chamas ao seu redor não a atingia.
Ela estava envolta por uma névoa espectral, que a mantinha intangível, mesmo que o termo não lhe significasse nada, seu alívio por estar viva superava o estranhamento da situação, por isso ela ainda se mantinha ajoelhada e rezando, abraçada ao pequeno pacote.
— Não se preocupe… — só ao ouvir aquela voz desconhecida, Celeste percebeu que os sons característicos do incêndio estavam como que abafados. — Vim tirar vocês daqui…
Ela se voltou e então o viu.
Apesar de permanecer envolta pelas chamas do incêndio, era possível distinguir as cores vermelho, dourado e branco do uniforme, o visor amarelo não escondia seus olhos sem íris e sua máscara não deixava nenhuma outra parte de seu rosto à mostra.
— Vamos embora? — com a mão estendida, ele aguardou pacientemente até que ela conseguisse criar forças para se levantar. — Isso… Calma… Não temos pressa.
— Você é um anjo? Eu vou pro céu?
— Provavelmente… Um dia… — ele sorria pro debaixo da máscara, que modulava sua voz, mantendo a pobre senhora calma. — Mas não hoje…
Com muita delicadeza a mão enluvada segurou a da mulher, que mantinha seu bem mais precioso agarrado a seu corpo tanto quanto possível e, para espanto de dona Celeste, logo eles estavam flutuando.
Pouco a pouco saíram no verdadeiro inferno em que aquele trecho da favela havia se tornado, as chamas foram ficando distantes, até quando, finalmente, ambos desceram até um lugar apinhado de ambulâncias, caminhões dos bombeiros e toda sorte de voluntários.
— Mais uma chegando!
Os dois desceram próximos a alguns paramédicos, que já estavam se movendo o mais rápido possível para atender a recém-chegada. Logo ela estava dentro da ambulância, deixando finalmente que seu embrulho se abrisse um pouco, revelando uma cachorrinha, que lambia feliz o rosto de sua dona, que não a abandonara em momento algum.
O homem uniformizado já começava a ser envolto outra vez pela névoa, quando um bombeiro foi se aproximando rapidamente, fazendo-o desativar seu poder para ouvi-lo.
— Resgate! O capitão Romero pediu para você ir até a área norte do incêndio! Alguns homens acabaram presos, enquanto tentavam salvar um grupo de viciados, que estavam numa boca de fumo quando as primeiras explosões começaram!
O uniformizado apenas acenou positivamente com a cabeça, voltou a ficar com os olhos sem íris, o corpo transparente e coberto pela névoa branca, alçando voo, seguindo rapidamente até a direção indicada pelo homem, que ele reconhecera como o soldado Batista.
— Rápido! Por aqui!
Os homens presos tentavam proteger os jovens viciados, mesmo que eles mal percebessem o perigo que os cercava, uma vez que estavam imersos no mundo de fantasia proporcionado pela nova droga do momento, a Portal.
— Saco! — o capitão do corpo de bombeiros, Oscar Romero, que nunca deixava seus homens correrem riscos sozinhos, se arrependia momentaneamente por não ter aceitado a última oferta para um cargo que o faria ficar atrás de sua mesa, enquanto precisava segurar um jovem que balbuciava coisas como querer voltar para o mar, enquanto cambaleava em direção às chamas. — Volta aqui moleque!
Dentro dos pesados uniformes, os cinco bombeiros procuravam uma saída, mas era como se as chamas daquela região estivessem literalmente agindo contra eles, se movendo de uma forma quase organizada, fechando cada vez mais o círculo ao seu redor, com labaredas que se aproximavam e recuavam após tocar de leve nos tecidos.
De repente algo que lembrava uma onda feita de fogo se ergueu, assumindo uma forma de curva descendente, forçando os bombeiros a fecharem os olhos, se despedindo em pensamento de todas as pessoas amadas que eles deixariam para trás.
Assim como ocorreu com dona Celeste todos se pegaram surpresos por não estarem queimando e morrendo de forma agonizante, pelo contrário, pareciam estar num ambiente totalmente adverso do que aquele em que estavam realmente.
Um sorriso se formou no rosto por detrás da máscara do capitão Romero, assim que ele conseguiu coragem para abrir os olhos, reconhecendo quem acabara de ajuda-los.
— Precisando de uma mãozinha para permanecer frio capitão?
— Ainda bem que você não virou youtuber daqueles canais engraçadinhos, garoto…
— Tenho mais cabelos brancos que você… Senhor… Jura que vai ficar me chamando de “garoto”?
— Aí é problema seu e da sua genética estragada… — os dois riram como velhos amigos, enquanto o capitão dos bombeiros percebia que até mesmo os jovens viciados estavam, aparentemente, retornando da viagem alucinógena. — Sabe que essa sua… Coisa… Podia te dar uma puta grana, né? Ainda mais pelo efeito que tá causando nesses moleques… No dia em que você quiser abrir uma clínica, ou algo do tipo, me avisa para sermos sócios.
Resgate permaneceu sorrindo, ele nunca esquecia das conversas com o velho amigo, que parecia incapaz de perder o bom humor, não importava a bizarrice da situação em que ambos estivessem metidos.
Sem mais palavras, após alguns instantes de concentração, o homem de uniforme colorido fazia todos flutuarem, levando-os rapidamente para onde havia sido erguido um centro de triagem médico, local em que era decidido quais emergências deveriam ser atendidas primeiro.
Era praticamente um cenário de guerra, mas mesmo com toda pressão e desespero ao redor, os profissionais presentes realizavam, com precisão cirúrgica, suas funções, todos felizes por ter ao lado um homem capaz de evitar a maioria das mortes que teriam ocorrido num incidente daquelas proporções.
Ainda assim, mesmo que mais ninguém o culpasse, era impossível para Resgate não olhar com tristeza e pesar para os sacos pretos enfileirados ao lado dos carros funerários, que tentavam levar o maior número de corpos para os necrotérios mais próximos, para começar o penoso trabalho de identificação.
— Mais ninguém? — uma mão pousava no ombro do herói, que mantinha os olhos brancos fixos no incêndio que ainda ardia, sem sinais de que seria vencido facilmente, um olhar e Romero já tinha a resposta. — Acredite, você já fez tudo o que podia… Se quiser pode ir para casa descansar…
— Claro… — Resgate sorria um sorriso triste, que seu interlocutor não veria. — Você sabe que eu sou assim mesmo né? Faço só meu trabalho e vou embora, enquanto as pessoas acenam felizes e aliviadas…
— Pelo menos tentei… Te vejo por aí.
E eles se viram muitas vezes.
Onde quer que fosse necessário, Resgate estava presente.
Ajudou várias vezes a direcionar os jatos de água pressurizada dos caminhões, principalmente quando via algum bombeiro que parecia ter dificuldades, devido ao cansaço das horas seguidas de combate ao incêndio.
Consolou pessoas que haviam perdido tudo, suas casas, objetos pessoais e, mais doloroso de tudo, entes queridos.
Mesmo alguns primeiros socorros ele realizou, enquanto não chegavam mais ambulâncias, ou socorristas, ou quando mãos tremiam de fadiga ao fazer um curativo.
O incêndio começou por volta da meia noite, pegando centenas de moradores de uma das maiores favelas de São Paulo totalmente de surpresa, causando uma devastação sem precedentes na história da cidade e cujo fogo só começou a ser devidamente controlado por volta das dez horas da manhã seguinte.
As colunas de fumaça ainda se elevavam, enquanto Resgate observava a tudo com atenção e, concentrado como estava, mal percebeu a aproximação de seu amigo, que trazia nas mãos duas imensas canecas de café.
Por alguns momentos houve apenas o som de ambos bebendo.
— Você acha que não foi acidental, não é?
— Não acho… Tenho certeza…
— O fogo estava realmente estranho… Mas o que não é estranho nesses nossos dias atuais? — Romero olhava pensativo para o céu vespertino. — Sei que você acha que não precisa, mas volto a te agradecer…
O outro, com seu capacete em uma das mãos, apenas retribuiu com um sorriso.
Mas um sorriso sem humor, melancólico, como ele sempre ficava depois de uma situação como aquela.
— E o que vai fazer agora?
— Descobrir o responsável, claro... — mais uma vez as pupilas castanhas davam lugar a olhos brancos, fantasmagóricos. — E fazê-lo pagar.
Resgate então devolveu a caneca, voltou a colocar o capacete e se lançou no ar, envolto em sua característica névoa.
O capitão Romero não queria estar na pele de quem fosse enfrentá-lo
XXX
“Graças à intervenção de alguns heróis, com destaque para o conhecido como Resgate, o número de mortos no incêndio da Favela do Mandaqui, foi reduzido a...”
A televisão desligou com o apertar de um botão do controle remoto, que foi jogado de um sofá para outro por uma jovem mulher, que permanecia sentada displicentemente, um cotovelo apoiado no braço acolchoado do móvel, o rosto encostado no punho fechado.
— Eu juro Jonas… — ela falava sem voltar seu olhar para trás. — Se tentar me assustar de novo com esses seus poderes, eu vou esperar você ficar sólido e chutar a sua bunda, como eu fazia quando éramos vizinhos lá em Campinas…
— Cacete Amanda… — conforme ia desativando o que ele chamava de Efeito Fantasma, Resgate também tirava seu capacete, revelando um semblante extremamente cansado. — Um dia vou descobrir que você também tem poderes…
— Quem sabe eu tenha? — ela se levantou ajeitando os cabelos vermelhos num coque, a blusinha se erguendo levemente a mais do que deveria, deixando à vista não apenas o short justo. — Quer café?
— Não obrigado… Acabei de tomar uma caneca e… Meu Deus, já são quase onze? Preciso pegar as crianças na escola… — ele soltou um longo bocejo, antes de continuar. — Eles foram bem? Principalmente a Marina… São gêmeos, mas ela anda muito mais questionadora que o Caio…
— Eles acordaram, perguntaram umas cem vezes do pai, mas assim que falei que você estava salvando vidas, acalmaram e então foi tudo tranquilo… Como sempre, quando estão comigo, aliás…
— Vai ver esse é outro super-poder que você está me escondendo…
— Posso estar escondendo muito mais… — ela passou por ele, quase encostando no uniforme que, após um comando mental, foi desaparecendo, dando lugar a uma roupa mais casual, mas se ela esperava alguma reação diferente, recebeu apenas mais um bocejo. — Acho que você tá precisando descansar um pouco…
— Certo, me dá uns vinte minutos…
Jonas seguiu direto até seu quarto e desabou sobre a cama, já de olhos fechados e entrando com tudo no mundo dos sonhos.
Após um tempo que pareceu muito mais curto que o normal, ele acordou com o que pareciam duas bolas de demolição acertando—lhe na altura da boca do estômago.
— AH! Socorro! Estou sendo atacado por dois monstros!
As risadas, que ele tanto amava escutar, indicava que seus filhos estavam de bom humor, o que, com crianças na casa dos cinco anos, era algo que o deixava aliviado, principalmente após uma noite tão trabalhosa.
— Valeu querida… — ele via que na porta do quarto estava Amanda, que retribuiu lançando um beijo na direção de seu amigo de infância, que naquele momento dava graças por ter dado guarida para a moça, quando ela chegou de Campinas, pouco depois do nascimento dos gêmeos e da trágica morte de sua esposa durante o parto. — E agora molecada! É hora do monstro papai mostrar o que ele faz com quem o acorda pulando na sua barriga!
Ele agarrou os dois, enchendo—os de beijos e cócegas.
Apesar de tudo, a vida era boa, principalmente em momentos como aquele.
Mesmo assim, o incêndio e, o provável culpado, não saíam da mente de Jonas e ele prometia para si mesmo que o dia seria todo voltado para sua família, mas naquela noite, Resgate sairia à caça.
— Já dormiram… — Jonas passava pela sala, vindo do quarto de seus filhos. — Mais de cinco histórias… E preciso inventar quase tudo…
— Ainda bem que você adora livros e cinema, não é? — Amanda se mantinha curvada sobre seu notebook, digitando rapidamente alguns textos para serem postados em comunidades voltadas aos heróis. — Acha que vai demorar muito hoje?
— Espero que não... — ele se aproximou da amiga e deu—lhe um beijo carinhoso no alto da cabeça. — Mas não posso prometer nada… Provavelmente, se houver um culpado pelo incêndio, duvido que se entregue numa boa…
Ela então fingiu não dar importância demasiada sobre o que seu amigo lhe dissera, mesmo sentindo o coração ficar um pouco apertado, conforme ele saia pela porta.
Nunca era cem por cento certo que ele voltaria.
E isso acabava com ela.
XXX
Resgate voava rapidamente pelo céu noturno de São Paulo, indo direto para o que restara da Favela do Mandaqui, pousando de forma silenciosa no local que, horas atrás, lhe fora informado ser o ponto zero, onde tudo havia começado.
Uma imensa marca de queimadura, calcinando o solo, confirmava a informação.
O herói olhou para os lados, para ter certeza de que ninguém estava por perto, para só então fazer as duas lentes de seu visor se retraírem, deixando os olhos à mostra. Ele se concentrou, fazendo suas pupilas sumirem e seus olhos começarem a gerar sua névoa característica.
No mesmo instante foi como se ele deixasse de estar num lugar vazio, consumido pelo fogo, mas de volta a como era aquela área da favela, vendo todas as pessoas que acabaram morrendo no início do incêndio.
Mulheres conversando, crianças brincando, velhos sentados nas calçadas vendo a movimentação, uma jovem trazendo nos braços um recém-nascido, cenas comuns que se desenrolavam diante dos olhos de Resgate, que a tudo observava, aguardando o momento em que a morte chegaria.
Sua atenção foi atraída por um grupo de garotos que passava por ele, todos correndo atrás de uma semidestruída bola de capotão, acabando por ser surpreendido por um brilho intenso surgindo à sua direita e que, impossivelmente, ofuscou até mesmo sua Visão Espiritual.
No instante seguinte as chamas engoliram todos os presentes, deixando o herói sozinho, que tratou de desativar seus poderes, caindo de joelhos sobre o chão calcinado.
Ele só precisou de alguns segundos para se erguer, os olhos voltando a ficarem brancos, mas sem a névoa, as lentes do capacete voltando, sua concentração ao máximo, deixando de lado as almas dos mortos que ainda vagavam por ali, focando no brilho que se afastava lentamente.
Alçou voo e começou uma estranha perseguição, de curta duração, pois as impressões fantasmas deixadas pelo provável culpado, pararam ao chegar em um prédio abandonado, não muito longe do Mandaqui.
O local havia sido invadido a anos por diversas famílias, por isso, querendo evitar novas mortes desnecessárias, Resgate decidiu pousar no teto de um prédio comercial próximo, mantendo o foco no quinto andar da favela vertical, de onde ainda era possível ver o brilho que ele seguira.
Por causa do excesso de pessoas que deveriam estar no local àquela hora, ele não poderia fazer a abordagem de “pé na porta e porrada”, precisando de algo mais sutil.
Em horas como aquela, ele agradecia por todos os conselhos que recebera do amigo Romero, quando ele entrara no corpo de bombeiros a muitos anos e uma vida inteira atrás.
Seria necessária muita concentração, mas ele não permitiria mais mortes, salvar todas as vidas era o que ele fazia, desde os tempos de bombeiro e, principalmente, agora em sua nova “carreira”.
Por isso ele flutuou até o térreo do prédio abandonado e, mantendo o Efeito Fantasma acionado, entrou no corredor principal do primeiro andar, se concentrando em espalhar suas névoas por debaixo de portas improvisadas, tocando a todas as pessoas que se encontravam ali.
Só após ter certeza de que havia alcançado seu objetivo, ele seguiu para o andar seguinte, passou por onde o brilho ainda o ofuscava e seguiu em frente indo até os andares mais altos, para só então voltar.
Seu rosto era uma máscara disforme de dor, deixando claro todo esforço que estava fazendo, quando finalmente chegou até o quinto andar, parando a poucos metros do culpado pelo incêndio da noite anterior.
A dificuldade de manter seus dons tão espalhados era maior do que tudo o que ele fizera em sua vida, só que Resgate não se importava, se ele conseguisse tirar o criminoso dali, sem perder nenhuma vida inocente no processo, toda a dor valeria a pena.
Ele cerrou os punhos, para ajudar seus esforços e tentar passar uma imagem mais intimidadora, conforme ia se aproximando do brilho que, pouco a pouco, deixou de ofuscá-lo.
A surpresa quase o fez desativar o Efeito Fantasma.
Ele esperava algum criminoso, uma ameaça terrível, um vilão de roupa colorida e sanidade duvidosa, mas não foi isso que ele encontrou.
Diante dele estava a jovem mãe que ele vira na Favela do Mandaqui, ainda embalando seu recém-nascido.
A mulher tentava manter tranquilo o sono do pequeno, com frases quase inaudíveis, mas que beiravam a insanidade, pedindo desculpas, de um modo que não ficava claro se para o pequeno, para o homem ao seu lado ou para alguém que ele não estava enxergando.
Obviamente ela se encontrava num estado de histeria, um caso de depressão pós-parto, provavelmente, mas o que Resgate não estava entendendo era por que seus poderes o haviam trazido até ali.
Ele cogitou desativar o Efeito Fantasma que o mantinha conectado com todos os moradores do prédio e que começava a cobrar o preço por tamanho esforço, mas não o fez, afinal aprendeu das piores formas que era sempre melhor prevenir.
— Moça? — com passos cuidadosos, procurando não assustar a mulher, para não correr o risco de ela deixar a criança cair, ele estendia uma mão, ainda preocupado com a possibilidade de que o responsável pelo incêndio do dia anterior pudesse estar por perto. — Me deixa te ajudar…
— Me desculpa… — ela se levantou e andou lentamente para longe do herói, repetindo as desculpas como uma ladainha religiosa. — Me desculpa meu Deus... Por que eu dei a luz a isso…
— Olha, por favor, precisa me deixar pegar o bebê para que possamos sair daqui… — enquanto Resgate continuava tentando chamar a atenção da mulher, a criança parou de mamar e começava a reclamar, provavelmente ainda com fome. — Se me deixar ajudar, eu…
A frase foi interrompida de repente, quando Resgate mal conseguiu registrar que pequenos filamentos vermelhos se espalhavam pelo corpinho do recém-nascido que, assim que começou a chorar de verdade, acabou explodindo numa esfera de luz.
Luz essa que criou uma espiral de chamas que, após rodopiar pelo ar, se espalhou em todas as direções, calcinando o chão de cimento e paredes cujas fiações estavam expostas, causando explosões elétricas, consumindo madeiras que, não resistindo à onda de chamas, estilhaçavam-se e, não fosse a prevenção de Resgate, o fogo consumiria também os corpos dos moradores do prédio.
Quando o herói voltou seu olhar para mãe e filho, percebeu que ambos ainda estavam vivos e, por mais impossível que pudesse ser, sem estarem sob o efeito de seus poderes.
— Me desculpa… Por que eu dei à luz ao filho do diabo!
Ela ergueu a criança e, no momento em que a jogou contra uma parede próxima, logo que ambos perderam o contato, as chamas a engoliram, consumindo-a em segundos.
Um tempo parecido com o que Resgate levou para se jogar para frente, conseguindo agarrar o bebê antes que ele pudesse acertar uma parede próxima.
Tendo a criança nos braços, imediatamente envolto pelo Efeito Fantasma, o herói percebeu que, ainda assim, o fogo continuava a arder, consumindo o prédio, cujos moradores finalmente perceberam que estavam intangíveis e cobertos por uma névoa branca.
— Resgate! — uma voz conhecida ecoou pelo comunicador auricular do capacete do herói, que tentava sem sucesso acalmar o bebê. — Estamos quase chegando a um prédio abandonado que foi tomado pelas chamas… Parece que tinham muitos sem teto morando lá… Não é possível ter sobreviventes, mas…
— Eu estou aqui Romero! Segui um rastro do ponto zero do outro incêndio e descobri o responsável, mas não é nada do que eu imaginei! Preciso que vocês se concentrem em apagar as chamas e evacuar os prédios próximos! Os moradores daqui estão seguros, por enquanto!
Sem mais a dizer, Resgate desligou o comunicador, deixando um preocupado capitão dos bombeiros com a missão de fazer como lhe fora pedido, ordenando seus homens para se focarem nas mangueiras e acabar com o fogo.
— Calma pequeno… Calma…
As linhas de energia vermelha apenas aumentavam de intensidade conforme a criança continuava a chorar, fazendo o incêndio, num espelhamento de suas emoções, aumentar também, ameaçando não apenas o prédio, mas todo o quarteirão.
O esforço de manter dezenas de famílias protegidas pelo Efeito Fantasma, ainda mais agora que o pavor do fogo começava a se espalhar, estava sendo demais e logo Resgate não conseguiria mais protegê-los, resultando nas mortes imediatas de todos, que seriam engolidos e consumidos pelas chamas que a criança continuava mantendo acesas.
Lágrimas começavam a rolar pela face do herói, enquanto ele ia ficando sem alternativas, uma vez que parecia que a criança só ficaria quieta de uma maneira.
— Não! Isso não!
Ele então resolveu arriscar, concentrou parte de seus poderes num punho, enquanto a outra continuava a segurar o bebê, ele pedia perdão, pois só lhe restava usar a Distorção da Alma.
Quando usado em um adulto, principalmente algum superpoderoso, tal poder fazia a pessoa atingida sofrer dores inimagináveis, nada físico, mas sim como uma dor direto na alma.
Usado em um bebê, um recém-nascido, não era possível imaginar o que aconteceria, mas ele precisava tomar uma decisão que salvasse a maioria das pessoas do prédio.
Seu punho começou a descer.
O bebê não dava conta do que estava acontecendo, continuando a chorar e expandir o fogo.
Foi quando a mão estava a poucos centímetros do rosto da criança, que o herói resolveu tentar outra coisa.
Resgate abraçou o bebê e se concentrou como nunca na vida.
No instante seguinte, foi como se na rua começasse uma chuva de pessoas transparentes e cobertas por uma névoa branca, que se desfazia assim que eles chegavam perto o suficiente do chão, para não se machucarem com a queda, conforme eram expelidos do Efeito Fantasma.
Agora restavam apenas Resgate e o bebê no prédio.
Ele se lembrou das noites sem dormir, na época do nascimento dos gêmeos, quando ele, sozinho e enlutado, não dava conta de fazê-los se acalmar por causas que ele não tinha como saber exatamente.
Por isso ele acabou fazendo o mesmo que fizera na época.
Começou a cantarolar uma música qualquer, a letra não importava, mas o tom acalentador sim, ele também alternava massagens na barriga da criança, bem como carinhos no rostinho.
Na rua a batalha continuava, as mangueiras dos caminhões eram direcionadas de forma a manter o fogo apenas no prédio, evitando que se alastrasse para as construções próximas, paramédicos atendiam casos de pessoas extremamente assustadas e não feridos, graças aos esforços do Resgate, que continuava tentando acalmar a criança.
O capitão Romero temia pelo amigo, conforme continuava a dar ordens e a ajudar a seus homens, precisando gritar a plenos pulmões para se sobressair à cacofonia ensurdecedora em que a rua se encontrava, por causa da multidão que, sem saber como, havia sido salva do incêndio.
De repente, silêncio.
E ninguém acreditou no que aconteceu em seguida.
XXX
“As cenas gravadas com exclusividade por nosso cinegrafista, já se espalharam por todas as mídias do planeta, mostrando o herói conhecido como Resgate descendo do que restou de um prédio que, poucos segundos atrás, estava totalmente em chamas.
Ainda restam dúvidas sobre o que era o pacote que ele trazia nos braços, uma vez que, antes que qualquer repórter se aproximasse, ele simplesmente saiu voando, sem nenhuma explicação.
Precisamos destacar que tal ação apenas serve para piorar a imagem de certos heróis, enquanto outros, como o simpático Capitão Força, sempre arranja tempo para entrevistas e...”
— Como eu odeio quando falam assim de você…
— Deixa pra lá, Amanda… Sabe que não sou como esses babacas que adoram ser o centro das atenções ou loucos por seus quinze minutos de fama… O que importa é que tudo acabou bem… Menos para aquela coitada…
— Não encontrou nada sobre ela? Nem com seus poderes…
— Nada, foi como se as chamas tivessem consumido tudo… Até a alma dela…
— E o bebê, Jonas?
— Eu o levei para um lugar seguro, vão tentar descobrir de onde vem seus poderes e o ajudarão a controlá-lo… Ao menos lá, ele terá uma chance de crescer... De viver...
— Os dois dormiram?
— Sim… Mais uma vez obrigado pela força, se não fosse você…
— Você seria obrigado a chamar uma babá, provavelmente uma adolescente que se apaixonaria por você e te traria ainda mais dores de cabeça…
— Provavelmente… Agora… — com um momento de concentração o uniforme se formou ao redor de Jonas. — Eu…
— Eu sei… Vá lá… Salve vidas, mas lembre-se…
— Do que?
— No fim, volte para sua família… Volte para quem te ama.
— E para quem eu amo.
Poucos instantes depois ele sobrevoava a cidade.
Havia mais pessoas precisando de sua ajuda.
E o Resgate estaria lá por elas.
6 Comentários
Uma aventura típica do Resgate, com todo o foco no salvamento dos inocentes. Essa, ao meu ver, é a característica que distingue o Resgate da maioria dos suprrheróis. Gostei demais do plot twist no final. Parabéns, João!
ResponderExcluirGrande Nerão! Obrigado pela leitura e comentário meu amigo!
ExcluirComo uma das poucas pessoas que conheceram a primeira versão do Resgate, fico feliz demais por ver que você gosteou de mais essa e, claro, o que você disse sobre o personagem é realmente o que eu mais busco, deixá-lo o mais diferente possível das típicas histórias de heróis de sempre.
Em breve uma nova série do Resgate vai pintar aqui... espero que você venha dar uma conferida e continue gostando.
Valeu de coração mesmo!
Resgate é um personagem do tipo maduro, o cara que sabe como agir diante da situação tensa, o tipo do cara que usa a ideia de "ninguém fica para trás", ele me lembra muito a equipe GoGo Five de super sentai, que embora alguns problemas na série, o foco deles era a missão de resgate e nada abalava esse espírito! Curto muito esse tipo de personagem, parabéns pelo trabalho Norb!! \0/
ResponderExcluirMuito obrigado pelço comentário e leitura amigão!
ExcluirNessa versão do Resgate eu quis fazer um herói que, como você muito bem apontou, está num estágio avançado de maturidade e tenta estar preparado para tudo.
isso será mais explorado em sua série, que já estreou.
Valeu mesmo e espero que vontinue curtindo.
O Multiverso Literário não poderia começar melhor !
ResponderExcluirResgaste é daqueles heróis que fazem falta hoje em dia .
Cirúrgico, preciso e assertivo.
Sem rodeios!
Faz o que tem que fazer e acabou!
Vamos acompanhar, na medida do possível!
Abraços!
Valeu pela leitura e comentário.
ExcluirEu tento, com esse personagem, mostrar como agiria um herói realmente preparado...
espero estar acertando.